Imaginemos uma criança que, pela primeira vez, visita um museu. Provavelmente, daqui por uns anos, apenas se recordará, vagamente, duma ténue imagem dum quadro e da respectiva moldura, talvez do silêncio, dos intermináveis corredores, do eco dos passos e do espaço asséptico e geométrico, que percorreu.

Passemos, agora, ao caso dum professor universitário de História de Arte que prepara a sua Agregação e, em cerca de duzentas páginas, pretende demonstrar conhecimento científico e os resultados do seu trabalho de investigação sobre um determinado período de um pintor, perante os pares, focando-se especialmente num quadro. Passará, certamente, dezenas ou centenas de horas a observá-lo. Observará, talvez, a posição dos corpos, a luz, as sombras, o tamanho e as proporções dos objectos presentes, o(s) ponto(s) de fuga, as personagens representadas, o que vestem e o material que constitui a tela.

No mesmo âmbito de observação, já um engenheiro físico, porém, para o mesmo quadro, observará as cores, a composição química das tintas utilizadas, os pigmentos, os tipos e graus de oxidação, a composição da tela e com recurso a sofisticado equipamento laboratorial poderá até situar, no tempo, a criação da obra. No limite, poderá detectar que o material que constitui a tela não poderia ter sido fabricado no período atribuído ao pintor e que o quadro não passa, por isso, de uma falsificação quase perfeita.

O que separa a criança, o professor e o engenheiro é, portanto, muito grande. A diferença entre o “olhar” e o “ver” é vasta, abissal talvez. Jamais me esquecerei do que escreveu Fernanda Botelho no “Esta noite sonhei com Brueghel” na viagem autobiográfica às suas raízes, na pele de Luiza, ou Agustina Bessa-Luís na “Ronda da Noite” sobre o quadro de Rembrandt, encomendado pelo capitão Frans Banning Cocq, que nele figura ao centro, com a menina Saskia, especialmente nos parágrafos mágicos quando dissecava, de forma única e irrepetível, o universo português dos Nabasco.

Portanto, ver um quadro ou ler um livro depende muito da ligeireza do “olhar” ou da profundidade do “ver” de quem o cria ou analisa. Seja na Literatura, seja na Economia. Neste contexto, o Orçamento do Estado (OE) pode ser encarado como um quadro. Ainda assim, perguntará o leitor o que é que o OE tem a ver com a História de Arte. Tem quase tudo. O OE tem diferentes leituras consoante a profundidade que lhes queiramos dar, porque é estruturalmente um documento de orientação política que determina um rumo. Diz onde, quando e como se podem gastar os recursos do Estado.

Há ministérios que nem deviam existir porque não possuem estrutura nem orçamento (Despesa Consolidada Total – DCT) para que existam e possam funcionar, apesar da ideia inicial ser interessante e se justificar plenamente (Coesão Territorial com apenas 56,9M€ terá uma actividade muito limitada) ou deviam existir com mais recursos (Mar com 134,1M€).

Por outro lado, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, com 2.848,1M€, fica limitado e aquém das necessidades face aos desafios e importância estratégica da sua missão. Já a Administração Interna (2.158M€) fica aquém das responsabilidades do Estado em proporcionar segurança, em todas as vertentes, aos seus cidadãos.

Sobre o excedente orçamental, é positivo e louvável que um ministro das Finanças queira ter excedente. É saudável ter excedente. Muitos países europeus têm excedente. O nosso rating pode melhorar substancialmente e num país altamente endividado (meta previsível do rácio da dívida pública a atingir 116,2% face ao PIB, em 2020, face aos actuais 119,3%), perante os credores internacionais, podemos aspirar a pagar menos pelo serviço da dívida.

Mas é preciso compreender que a situação de Portugal é diferente. Nos países sem défice, não existe a necessidade imperiosa de investimento. Em Portugal, ainda temos falta de infraestruturas ferroviárias, aeroportuárias e hospitais, por exemplo.

Em Bruxelas, face às contas públicas de Itália e Grécia, até haveria disponibilidade política e abertura para uma eventual abertura de procedimento de pequeno défice excessivo de Portugal, desde que fundamentado, mas sendo o Prof. Centeno o actual presidente do Eurogrupo, compreende-se que não o queira fazer e que o tema nem seja discutido. E bem. Até porque, brevemente, a preocupação vai chamar-se Polónia, não pelo endividamento que, face ao PIB, é baixo (projecção de 45,5% no final de 2020), mas pela  sobreposição e ataque do poder político ao judicial com leis absurdas e inaceitáveis pela União Europeia.

O OE, nos seus cenários, vinca uma forte aposta no aporte de recursos provenientes do Turismo, mas só este sector não é suficiente, até porque há riscos geopolíticos. Por um lado, os preços estão elevados em Portugal e se hoje Lisboa pode estar na moda, todos sabemos que nenhuma moda dura para sempre.

Só o investimento inteligente poderá ajudar Portugal a melhorar a produtividade, nomeadamente apoios à indústria exportadora. Penso que só a forte aposta na Indústria poderá trazer crescimento económico sustentado.

Há um caminho difícil, mas possível, entre não subir impostos ou até reduzi-los e investimento do Estado, cuja única solução é cortar no desperdício de verbas públicas e infelizmente, mais uma vez, não se vislumbra essa premissa plasmada no OE. Os portugueses viviam, até 2015, em carga fiscal acentuada, posteriormente passaram à sobrecarga fiscal e hoje vivem numa quase escravatura fiscal. Pelo que não haverá margem para mais aumentos de impostos e até mesmo as diferentes longitudes de pensamento político hoje concordam neste pressuposto.

O OE devia ter destinado, ao Ensino Superior, uma DCT maior para reforçar a aposta na qualificação dos portugueses, até porque os objectivos traçados anteriormente, nos Contratos de Confiança, ficaram por cumprir.

Ainda na Educação (Secundário), existe e continuará a existir e a agravar-se o flagelo dos jovens sem aulas por ausência de docentes, no ensino secundário, porque não se consegue colocar professores que, por não terem qualquer apoio à deslocação, não ganham o suficiente para viverem, caso se desloquem para longe da sua residência habitual. Este OE não respeita a Educação, nem os professores do Secundário, que mais uma vez ficam marginalizados.

O OE não traz rigorosamente nada de novo sobre a relação dos portugueses com o Estado, que continua perversa, ano após ano. Se nas Finanças quase tudo funciona, até existe um Portal onde o cidadão pode praticamente tratar de todos os assuntos fiscais, tranquilamente, sem sair de casa, já na Saúde, temos o caos, com tempos de espera indignos e um significativo grupo de portugueses, mais frágeis economicamente, a terem que esperar quatro ou cinco anos por uma consulta de especialidade ou cirurgia.

Nas Forças Armadas, os vencimentos pouco atractivos estão a levar ao esvaziamento dos contingentes e a insuficiência de meios levará, a curto prazo, a  colocar em risco a missão das mesmas.

O país precisava de um outro OE, ajustado ao país real, que trouxesse rumo e ambição. Porque é essa a distância entre o “olhar” e o “ver”. E é exactamente esse o problema do OE para 2020: o “olhar” de Centeno.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.