1. Os analistas domésticos andaram meses a tentar encontrar alterações ao comportamento de António Costa e de Mário Centeno nesta nova fase da governação saída de outubro. As leituras foram sempre toscas, porque desprovidas de uma análise psicológica de cada uma das personalidades, porque sujeitas a uma espécie de adivinhação típica dos curandeiros de lugarejo.

Costa e Centeno souberam, por estes dias como nos quatro anos anteriores, fazer o caminho no sentido de cumprir uma máxima “marcelista” – a da evolução na continuidade orçamental. O CEO e o CFO do Governo talvez nunca tenham ouvido Beethoven – Cello Sonata No 4 in C major, Op. 102 – uma peça única onde o violoncelo é central e o piano se enreda numa tentativa permitida de o limitar, por vezes abafar. No final, o violoncelo, tal como Costa, sobressai na clareza dos sons, clarificando a clareza da tática que leva a mais um orçamento.

2. O fácil da adivinhação portuguesa é encontrar uma espécie de perdas e ganhos no peso dos protagonistas políticos. A criação de um ministério para as administrações públicas, a transição da gestão do processo das PPP para a economia, a abertura dos cordões à bolsa para a saúde, tudo seria uma espécie de derrota para Centeno. Nada a de mais errado, Centeno não precisa de muita tralha administrativa desde que tenha os cordões centrais (cativações), que seja o autorizador das cercas (salários e pensões), que se revele na autorização das bondades (reforços na saúde ou infraestruturas).

O Orçamento do Estado mostra duas coisas – Centeno continua a garantir a redução do défice e da dívida; Centeno é a carta de alforria para continuarmos a ter o mais longo período, desde a nossa adesão ao euro, de crescimento.

3. Já se adivinhava que em 2020 não haveria uma assinalável redução de impostos. Não poderá acontecer tendo em conta a cristalização da nossa despesa e os riscos que continuam a pairar sobre a economia europeia. Mas os impostos que aumentam inserem uma boa receita política – a da descarbonização da economia. Portugal assumiu metas muito admiráveis para a concretização da neutralidade carbónica. Ora, sabemos todos que só há duas formas de implicar o país para essas metas: 1) incentivos ou 2) impostos. Não podendo suportar incentivos substanciais que nos levem a andar rápido é sustentável que as obrigações que temos pela frente se coloquem no âmbito tributário.

4. A despesa corrente vai continuar a crescer e de forma significativa. Está aqui a minha principal preocupação, porque deveríamos estar a reestruturar as administrações públicas para uma aceleração da qualidade do serviço prestado. Acontece que os portugueses obrigaram a um governo com contingência parlamentar e essa contingência leva, irremediavelmente, a um crescimento maior da despesa com salários e com pensões.

É claro que os agentes públicos estagnaram nos seus rendimentos nos últimos dez anos. É claro que a situação não é de molde a parar na reposição de direitos. Mas a despesa retomou valores anteriores à grave crise que vivemos e constituiu uma obrigação firme para o futuro.

5. Este orçamento confirma as contas certas. Mas, numa leitura primeira, parece ser escasso de uma visão para a economia real, para o investimento privado nacional.

Os promotores estão dispostos a investir mais. Mas há muitos que sentem que os poderes públicos os fazem entrar numa espécie de “poço da morte” de onde só conseguem sair depois de gastarem quase todas as energias iniciais. A política de fomento económico deveria assumir uma dose muito assinalável de voluntarismo, de companheirismo, até de uma integração frásica com os agentes do país real.

O meu erro de análise, que assumo, parece levar-me a constatar que há uma valorização de uma visão rendista, certamente elaborada e ilustre, mas que não se destina a acelerar a integração das empresas, o robustecimento do seu nervo nos mercados, a ampliação das exportações para além do turismo, ou mesmo a leitura nacional e organizada da substituição de importações por produção nacional.

6. Como Beethoven no diálogo entre o violoncelo e o piano, a construção musical deste orçamento apresenta-se em competição, em divergência e em compromisso. O violoncelo submete o piano com as suas muita teclas, à obrigação de uma sonoridade que se aprova e até se recomenda por agora.

O Orçamento para 2020, nesta visão tão pouco normal da vida política e tão estranha aos comentadores de ocasião, é a quinta sonata de um ciclo político. É bem provável que nem precise de retificação para ser cumprida.