Na teoria económica convencional dinheiro é normalmente visto como um meio de troca, um passo intermédio entre o que se produz e o que se quer obter, um véu neutro que cobre toda a economia e que tem uma influência negligenciável na economia real. Instrumental a esta visão é a conhecida história da sua origem, que nos diz que o dinheiro terá surgido espontaneamente, num contexto de troca directa, como o bem mais indicado para servir como meio de troca, facilitando assim essas transacções.

Uma visão alternativa afirma que a história da origem do dinheiro é muito diferente. Esta diz-nos que, na sua origem, está uma autoridade sobre uma determinada comunidade e a mobilização de recursos em prol dessa autoridade. Este ponto de vista é exemplarmente exposto por Christine Desan no seu recente livro – Making Money: coin, currency and the coming of capitalism – cujo primeiro capítulo, onde ela aborda esta questão, está disponível aqui.

Segundo Christine Desan, o ponto de partida para o aparecimento de dinheiro é uma comunidade onde cada membro (indivíduo ou família) contribui regularmente de alguma forma para o “centro” dessa comunidade. O “centro” pode ser um rei, um líder, um chefe militar, um governo democraticamente eleito ou qualquer outra forma de autoridade. Neste contexto, dinheiro surge quando o “centro” da comunidade recebe contribuições dos seus membros antes da altura devida, e oferece, como contrapartida, um recibo que simbolize essa contribuição antecipada.

Chegada a hora prevista para as contribuições habituais dos membros da comunidade, este recibo poderia ser entregue pelo seu portador em vez da contribuição devida. Entre estes dois momentos, o recibo poderia circular pelos membros da comunidade, estando o seu valor garantido pela exoneração de contribuir que este conferiria. Sendo obviamente desejável que tal recibo fosse difícil de falsificar, metais raros e de difícil manipulação foram frequentemente utilizados como matéria-prima.

Um exemplo mais concreto, ainda que numa versão muito resumida, é certamente mais elucidativo. Christine Desan dá como exemplo deste processo uma típica comunidade da Grã-Bretanha do século VII, após o abandono do exército romano dois séculos antes. Na ressaca desse abandono, a moeda usada até então como meio de troca deixou praticamente de ser utilizada como tal e as transacções comerciais colapsaram. Um líder de uma comunidade dessa altura cobraria regularmente tributos, na forma de bens ou serviços, a milhares de famílias que habitavam determinado território.

Quando, por exemplo, surgisse uma ameaça de alguma comunidade vizinha, esse líder requisitaria os serviços militares de algumas centenas de membros da comunidade, recompensando-os com uma espécie de recibo (como metal cunhado) que simbolizasse a contribuição extraordinária que tinham fornecido e que exoneraria o seu portador de uma parte das suas devidas contribuições futuras. Os detentores de tal recibo, caso preferissem continuar a fornecer os habituais contributos obrigatórios ao seu líder, poderiam usá-lo para obter bens de outros membros, servindo assim o recibo como meio de troca nessa comunidade. Para uma descrição bem mais clara e detalhada, recomendo o capítulo anteriormente referido ou este pequeno vídeo, ou ainda esta excelente entrevista em podcast.

Esta história alternativa da origem do dinheiro sugere que este nunca foi algo neutro, mas sim um projecto colectivo das sociedades que o utilizam. Citando Desan: “Ao entender dinheiro como uma instituição legal, abre-se a porta à sua exploração. Em vez de um intermediário neutro ou constante, dinheiro é um processo que tem afectado de forma distinta as comunidades que o criam de formas que têm mudado ao longo do tempo. (…) O papel das reservas bancárias, requisitos de capital e gestão de carteira de investimentos; o alcance do seguro dos depósitos bancários; a relação das instituições financeiras com o prestamista de última instância – estes formam o vocabulário de reforma num mundo com dinheiro de base bancária. Tudo isto são questões legais. À medida que tomamos as decisões legais (re)construiremos o dinheiro.”

O autor escreve segundo a antiga ortografia.