No âmbito da revisão do Estatuto da Ordem dos Advogados, discutem-se os atos próprios dos advogados. Segundo a Proposta de Lei do governo recentemente entrada no Parlamento, a consulta jurídica, entre outros atos próprios dos advogados, vai passar a poder ser feita por licenciados em direito que não sejam advogados.

Como a prestação destes serviços jurídicos envolve o cumprimento de deveres deontológicos, nomeadamente o sigilo e a imparcialidade, bem como a salvaguarda do conflito de interesses, os licenciados em direito, não estando inscritos na Ordem dos Advogados, devem garantir que os cumprem.

Não se alcança como o farão. A não ser que criem uma estrutura que imponha sanções disciplinares em caso de incumprimento. Talvez daqui a tempos nasça uma organização que assegure esse objetivo. Seria irónico que fosse criada uma nova Ordem dos Consultores Jurídicos. Como isso não se antevê, esta desregulação vai resultar numa prestação de serviços de consulta jurídica livre e frouxa do cumprimento de obrigações deontológicas, deixando cidadãos e empresas mais desprotegidos, especialmente os que têm menos formação e menos possibilidades de reagir.

Se a consulta jurídica puder ser prestada por membros não inscritos na Ordem dos Advogados, poderá verificar-se uma debandada dos advogados da Ordem, que passam a poder prestar serviços com menos custos (não pagarão quotas da Ordem) e com um regime de proteção social mais adequado. Para a Ordem dos Advogados restará o patrocínio judicial. Mas se o objetivo da Proposta de Lei passa por ter uma Ordem encolhida nas suas funções, há alguma incoerência.

A Proposta de Lei do Governo altera a composição dos Conselhos Deontológicos, que passam a ter membros não inscritos na Ordem, e cria um Conselho de Supervisão (com funções de gestão) onde os membros não inscritos na Ordem são a maioria.

Portanto, com o objetivo declarado de cortar cerce entropias corporativas, muito visíveis na forma como (não) correm muitos processos disciplinares e no regime do estágio, dota-se a Ordem de um aparelho disciplinar e de gestão mais conforme com o seu interesse público. Porém, ao mesmo tempo, promove-se abertamente a não inscrição na Ordem. Não só é contraditório como até é estranho, pois, por um lado, regula-se, por outro lado, desregula-se.

Deve dizer-se que esta ideia de criar uma classe paralela aos advogados, que se basta com a licenciatura em direito, é uma reação evidente ao regime de acesso e de estágio na Ordem. Há décadas que o estágio da Ordem dos Advogados não serve o interesse da comunidade em ter profissionais novos a entrar no mercado, nem o interesse dos advogados estagiários que iniciam a sua carreira profissional.

O tirocínio arrasta-se por dois anos ou mais, com exames que versam principalmente sobre matérias processuais já lecionadas na universidade e deslocações periódicas a tribunais que são de escassa utilidade, pois nem todos os advogados escolherão a via da advocacia de tribunal.

Mesmo a deontologia – matéria em que o estágio deveria estar centrado – é ensinada segundo um modelo universitário, inapropriado para pessoas que são já profissionais. Prova deste estado de coisas é que não se conhecem publicações da Ordem que reflitam o que é lecionado no estágio, este tal saber mágico que tem de ser apreendido durante dois anos e que habilita a ser advogado.

Há muito que creio que o estágio deveria durar somente alguns meses e deveria consistir numa experiência jurídica não necessariamente junto de um advogado, mas de uma profissão jurídica à escolha, incluindo juízes, procuradores do Ministério Público, notários ou conservadores. Seria algo que permitiria alargar o universo das experiências dos futuros advogados, beneficiando a prática e a complementaridade jurídica.

Em síntese, a desregulação das consultas jurídicas procura contrariar o que se tornou um pesadelo burocrático de acesso à profissão, à custa do tempo e do trabalho de advogados estagiários. Mas teme-se que acabe por resultar num mercado de serviços jurídicos demasiado livre, sem sujeição a deveres deontológicos que são conaturais nos serviços jurídicos.

O que seria proveitoso para todos era que a Proposta de Lei fosse discutida tendo em conta este enquadramento e se encontrassem as soluções mais condizentes com o interesse público da comunidade. Mas, infelizmente, não parece que tal venha a suceder.