Um amigo com quem esgrimo argumentos com frequência costumava apoucar o suposto messianismo da esquerda. O optimista neoliberal dos anos 90 desancava nos amanhãs que cantam. A conversa fiada, explicava-me, retinha o eleitorado expectante na vitória mítica e ilibava os seus líderes: não os obrigava à data da derrocada do futuro, nem os punia por não governarem o presente.

A caricatura afectava sobretudo o PCP, tido por destrutivo, que não contribuía para o sistema e não queria ser posto à prova. Acrescentava que não havia congresso que não falasse da crise económica em curso ou que não anunciasse a próxima. As profecias eram vagas e como a crise é parte intrínseca e cíclica do capitalismo, é previsão fácil.

De facto, a esquerda colocou-se à margem da governação durante décadas. E a experiência actual mostra que cedências antes tidas como inaceitáveis eram afinal possíveis. Mas a caricatura não era justa. O combate dos partidos à esquerda nas instituições e nas ruas era legítimo. E o protesto e a acção no Parlamento construíram o regime, nunca o ameaçaram.

Nesta nova fase da vida política há uma súbita inversão. Os partidos da geringonça encontram nas suas vitórias os pilares de uma nova identidade. A desconfiança subsiste e todos querem manter a autonomia. Mas a duração do enlace prende-os ao destino da governação e obriga-os a opções. A recusa em quebrar acordos é nota da crescente responsabilização.

Na direita grassa a radicalização messiânica. Nas conversas com o amigo reencontrado, a queda inevitável vai mudando a forma: é a fúria dos mercados, a punição da Europa ou o descontrolo das contas. A realidade que não cabe na narrativa é descartada. Aos resultados e às estatísticas contrapõe dados, muda o argumento. Nem o elogio internacional à contenção de Costa e à estabilidade de Catarina e de Jerónimo o demove.

O estado de negação é claro. O diabo prometido não veio, mas Passos mobiliza os apoios na expectativa de um outro amanhã que canta: um colapso indefinido e sem data. Ele cativou o partido no azedume e a sua estratégia é ficar. Ficar até o BCE, o Brexit, uma crise internacional ou a insensatez à esquerda lhe abrir espaço. Já não lhe interessa construir e até a redução da TSU impediu, contra a própria base de apoio. Nem que custe a derrota eleitoral, o fechamento do PSD ou a terra queimada, Passos aguarda o fracasso nacional para redimir o seu legado.

O tempo longo corre a seu favor, mas o tempo médio é assassino. Põe-se fora do sistema, mas tenta criar tensão na geringonça com impaciência. É que um partido inscrito numa cultura anti-poder não precisa da governação para ser coeso. Mas a identidade e a natureza do PSD são outras: não há messianismo que aguente os sociais-democratas tanto tempo. É certo que Passos lutará até ao fim, mas a derrota nas autárquicas reforçará a sua oposição interna.

O bloqueio do PSD tem ainda outro alvo. Marcelo apostará num entendimento ao centro se as exigências europeias tornarem a actual fórmula inviável. O seu empenho no acordo de concertação social indicia a preparação da guinada. Mas Passos não quer ser manietado pela presidência, dispensa a sua influência e está para ficar. Ele precisa da polarização para manter o seu poder. Ao empurrar o PS à esquerda, expectante no esgotamento dos acordos, aposta na segunda vinda da troika para reaparecer como a alternativa possível. E esvazia o poder de mediação de Marcelo, que só tem funções enquanto for garante de estabilidade. Não admira por isso que Marcelo se empenhe em sublinhar os sucessos recentes do país.

A expectativa de um embate é razoável. Se for pela instabilidade internacional, atingir-nos-á de igual modo seja com que governo for. A resolução dos problemas estruturais do país e da dependência externa não é fácil no quadro do euro e não se faz numa legislatura. Ela não está realmente nas mãos nacionais; há um limite para a nossa acção. Mas a parte que nos cabe só se faz com partidos que saibam ir além do ajuste de contas. É por isso que os amanhãs de Passos desafinam. Mesmo que a previsão de incêndio esteja certa, quem quer a liderar os bombeiros um conhecido incendiário?

O autor escreve segundo a antiga ortografia.