Em Abril de 1974 acontecia uma revolução. Estaria um dia de Abril, primaveril, mas com aguaceiros, típicos desse mês, e um grupo de gente jovem e afoita saía dos quartéis para pôr termo a um regime que governara o país durante 48 longos anos.

A emoção que ainda hoje podemos ouvir nos relatos e nas imagens foi enorme. As ruas transbordaram de alegria e parecia que o medo finalmente desaparecera. Nos últimos suspiros do regime, o povo abraçava-se na rua, não todos, mas os mais que suficientes para que esta revolução triunfasse.

Foi uma revolução coroada por cravos, com vítimas, mas poucas e fruto do estertor do final de uma época. Portugal era, então, um país pobre, analfabeto e sobrecarregado económica e emocionalmente por uma guerra colonial.

Não havia sistema universal de saúde, nem de educação, nem liberdade, o que era completado com o medo e com a ameaça da delação política sempre presente.  Esta revolução, com os seus tropeções, ambiguidades ou mesmo exageros, mudou o ar que se respirava no país.

Pela primeira vez se falou abertamente de igualdade e de liberdade, de educação e saúde para todos, de dar aos jovens uma esperança que não fosse uma guerra interminável que traria elevados custos sociais a um país que teve muita dificuldade em reconhecê-los (se é que chegou a fazê-lo).

Quando nos perguntamos o que mudou, basta vermos duas ou três reportagens, ler uns jornais de época ou pegar em autores literários contemporâneos para perceber que mudou tudo. A esperança, antes negada, agora espreitava em cada esquina, mas com esta crescia a exigência de ter mais e melhor sociedade.

Toda esta revolução se passava em contraciclo. Se até aos anos oitenta do século XX, e ainda por essa década adentro, em Portugal se tentava construir um estado social, noutras partes da Europa esse estado social começava a ficar comprometido e relegado para segundo plano. Sucessivas crises económicas lançavam o mundo em convulsões permanentes, agravadas pela competição entre dois grandes blocos, liderados pelos EUA e pela União Soviética. A vertente liberal crescia e a vertente social recuava. Mas voltemos atrás.

Portugal do avesso

Portugal ficou virado ao contrário. O que antes era proibido tornara-se no dia a dia dos portugueses. A politização da população era permanente e atravessava todas as áreas da sociedade.

Nas escolas, nas fábricas, nos campos e nas ruas havia discussões permanentes sobre o rumo político. Foram tempos turbulentos, mas também de descoberta, em que se escreveu a Constituição do Portugal democrático e se preparou a universalização dos serviços públicos.

Pedro Prostes da Fonseca escreveu recentemente o livro “Os Putos do PREC”, editado pela Guerra e Paz, em que expõe esse processo de construção da revolução, também feita por adolescentes ainda no ensino secundário. Com base em testemunhos de estudantes e professores, complementado pela citação dos decretos-lei orientadores das políticas de educação da época, o autor mostra vivamente os conflitos e a superação destes num contexto de luta política acérrima.

Neste livro, acompanhamos a contestação estudantil, mas também essa ideia de um ensino mais justo e universal. A vontade de participar e, sobretudo, de contestar era transversal à sociedade portuguesa e Prostes da Fonseca demonstra-o bem. A sua narrativa está recheada de nomes sonantes, alguns associados a movimentos políticos que hoje nunca suspeitaríamos.

Este livro é um exemplo sobre as inquietações de um setor, novamente, em sobressalto. A forma como o autor documenta o seu livro mostra sobejamente os desafios de construir todo um sistema debaixo de uma competição política permanente que estava nas ruas, contribuindo para o conhecimento desta época conturbada e das suas consequências num setor tão sensível.

Todos os que se interessam pela história contemporânea de Portugal conhecem alguns desses protagonistas destes tempos agitados e como o país era então. Hoje que tudo parece mais longínquo, vale a pena voltar a olhar para esses debates e perceber por que razão a esperança se tem desvanecido e houve cravos que não floriram.

Essa Europa

No seu ensejo da escolha do progresso e da democracia, muitos políticos portugueses defenderam que Portugal se deveria juntar à então Comunidade Económica Europeia (CEE) e olhar para um continente que durante séculos fora quase secundário nas suas políticas.

Mário Soares foi o protagonista que mais se destacou nesta caminhada. Passados cem anos sobre o seu nascimento – e beneficiando de inúmeros eventos que vão sendo realizados, entre estes o Colóquio Mário Soares e América Latina, realizado há um par de dias – podemos refletir sobre esse legado.

Essa Europa, que Soares defendia, era ainda uma Europa social. Portugal propunha juntar-se à Europa, mas ainda ligado à sua vocação marítima e a esses territórios outros que constituíram a sua história. A ligação à Europa deveria promover uma maior ligação a outras partes do mundo, de que a América Latina e África eram parte.

Na verdade, a então CEE funcionou como um farol de modernidade e, também, era vista por alguns como um garante da democracia, da paz e de uma cidadania plena. Contudo, avizinhavam-se também fortes transformações económicas e sociais.

Talvez a esperança mais frustrada tenha sido o facto de, apesar de integrar o mercado único europeu e beneficiar de políticas de coesão, os custos de contexto em Portugal mantiveram-se elevados. Portugal continuou a ter custos mais elevados para colocar os seus produtos nos mercados europeus e a estar numa ilha energética, para além da pequena dimensão do seu mercado.

De todo o progresso que o país veio a ter, não fizeram parte a facilitação de um percurso de competitividade que se manteve árduo e difícil. A entrada de Portugal num mercado tão competitivo, numa fase de ainda inexperiência negocial também contribuiu para a frustração de algumas ideias de concretização, resultado da adesão à CEE.

É neste contexto, muitíssimo complexo, que se constrói o Portugal democrático, regando uns cravos, deixando secar outros. A voracidade dos últimos 25 anos e a entrada num século XXI, que deixou à vista as dores da globalização, não deixam de contribuir para o desencanto atual.

Desafios, sim, cravos murchos, não   

Seria impossível terminar este texto sem uma palavra de ordem. Estamos numa época que traz imensos desafios pela frente, um mundo em transformação rápida, com impactos tremendos na Ordem Internacional, a par de transições profundas que afetam o tecido económico, nomeadamente, ao nível digital e económico.

Apesar da maioria dos cidadãos se aperceberem da imprevisibilidade em que vivemos, existe uma delegação de responsabilidades nos poderes políticos, sem um debate na sociedade civil que vá para além das opiniões nas redes sociais. O nível de cidadania está, agora, muito distante dos tempos de esperança nos idos anos 70 e 80 do século XX.

Se os cravos murcharam, há que replantá-los com novas intervenções políticas que, decerto, não podem dispensar a sociedade civil.