Em vários livros sagrados diz-se que a terra de Canãa, a antiga denominação da área geográfica que hoje corresponde ao Levante, era a terra prometida por Deus ao seu povo, uma zona fértil onde corria leite e mel. Nessa terra assentaram e multiplicaram-se os descendentes de Abraão, dando origem a um longo e turbulento período de conquistas e disputas que viu nascer e cair várias civilizações.

Alguns milhares de anos depois, as descrições bíblicas paradisíacas deram lugar, na periferia de Beirute, Líbano, a bairros de lata onde a sobrevivência é um jogo letal e sem misericórdia.

“Kafarnaum”, o filme da realizadora libanesa Nadine Labaki que venceu o prémio do júri do festival de Cannes e foi nomeado para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro pela Academia dos Óscares, dá-nos acesso direto e sem rodeios às ruas caóticas e delapidadas de bairros de lata libaneses, onde crianças vagueiam pelas ruas, a brincar com lixo e armas.

A história centra-se em Zain, um rapaz libanês que pensa ter 12 anos (a idade é uma incerteza entre muitas) e na relação tensa e confrontacional que vive com os seus pais negligentes. Zain é o único “adulto” da sua família que tenta zelar pelos seus irmãos e irmãs. Quando os pais vendem a irmã de 12 anos para um casamento forçado, foge de casa e aventura-se em Beirute por conta própria. O destino irá deixá-lo à porta de Rahil, uma imigrante etíope, que irá acolhê-lo e que também traz consigo uma história trágica.

Se Rahil busca documentos de identificação que lhe permitam ficar a trabalhar no Líbano, Zain procura uma identidade que lhe permita escapar do Líbano. Estas duas buscas cruzam-se e formam um retrato, por vezes insuportavelmente dilacerante, de vidas que tentam ultrapassar a miséria a que foram condenadas não porque tenham feito algo de errado, mas simplesmente porque nasceram no local errado, num mundo minado por profundas desigualdades.

Num dos momentos mais poderosos do filme, Zain acusa formalmente os pais, culpando-os do seu nascimento, e nessa denúncia representa todas as crianças cujos pais abdicaram das suas responsabilidades, roubando os filhos de um futuro digno.

Na Antiguidade, Kafarnaum foi uma das cidades da Galileia amaldiçoadas por Jesus e condenadas ao inferno por se recusar a reconhecê-lo como Messias. A moderna Kafarnaum retratada no filme é, de facto, uma terra amaldiçoada em que uma criança já viu o que nenhuma criança deveria ter visto.