Na década de 1980, houve uma comédia que teve uma ampla adesão por parte dos cinéfilos. Sob o título “Os deuses devem estar loucos”, o filme centrava-se na vida de uma tribo, que levava uma existência feliz e tranquila num remoto deserto africano, tudo se alterando a partir do momento em que uma garrafa de Coca-Cola caiu miraculosamente de um avião. O líder da tribo, Xi (N!xau), um bosquímano do Kalahari, decidiu, então, devolver o estranho objeto aos deuses na tentativa de restaurar a paz local.
Quarenta anos volvidos, o mundo é palco de uma verdadeira tragédia, não nos ecrãs, mas na vida real, com uma pandemia a afetar a vida de milhões de pessoas, obrigadas a ficar confinadas em suas casas, na tentativa de escapar à infeção pela Covid-19, que, em pouco mais de quatro meses, já ceifou a vida a cerca de trezentas mil pessoas.
Portugal, que tem apresentado números menos assustadores do que outros países, também viu o seu quotidiano ser fortemente afetado pela Covid-19, com empresas paralisadas, trabalhadores em lay-off, a taxa de desemprego em forte aceleração, o défice orçamental a explodir e a economia a interromper um ciclo de crescimento que parecia, ainda há pouco, incapaz de afrouxar.
No entanto, se tudo isto faz parte da “nova normalidade”, merecem-nos críticas algumas das opções tomadas pelo executivo, já para não falar das estridentes propostas da líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, sempre afanosa defensora do intervencionismo estatal na economia, na senda do marxismo e do trotskismo que estiveram na génese deste movimento político.
O Governo tem flutuado entre as proibições extremadas de reuniões ou manifestações familiares, musicais, desportivas ou culturais, com o aceitável fundamento de conter a expansão da pandemia, e as inexplicáveis cedências a situações em que, sem qualquer justificação plausível, merecem um regime de exceção difícil de compreender.
Assim, depois de proibir numerosos eventos públicos, de limitar o acesso de não familiares a cerimónias fúnebres, de encerrar creches, escolas e universidades, de fechar centros comerciais, restaurantes, clínicas dentárias, etc., foi decidido que o Parlamento era imune ao vírus, podendo celebrar o 25 de Abril, não sendo mesmo necessário recorrer nesse dia ao uso de máscaras, que a CGTP poderia, a título igualmente excecional, celebrar o dia do trabalhador, realizando uma manifestação em plena Avenida Almirante de Reis, junto à Fonte Luminosa, onde comunistas, também eles aparentemente imunes ao vírus, se juntaram em comício, vindo, agora, o primeiro-ministro a terreiro defender a realização da Festa do Avante, advogando que a mesma se encontra, também ela, abrangida por um regime de exceção, por não ser apenas um evento musical ou cultural, na medida em que mistura, igualmente, aspetos políticos.
Quanto aos católicos tiveram que resignar-se e assistir ao 13 de Maio no conforto das suas casas, com recurso ao televisor, uma vez que a Igreja não é merecedora do beneplácito que é concedido aos movimentos de esquerda, estando incluída na regra e não na exceção.
Quanto às limitações impostas aos “capitalistas” neste momento de crise pública, refira-se que os senhorios deixaram de poder despejar os arrendatários, ao mesmo tempo que os que recebem auxílios estatais se viram impedidos de recorrer aos despedimentos.
Mais longe, no entanto, como seria, aliás, de esperar, pretendia ir Catarina Martins, ao defender a proibição, em absoluto, dos despedimentos, dir-se-ia, jocosamente, ainda que as empresas venham a encerrar por terem ficado insolventes, a renovação automática de todos os contratos a prazo, mesmo que os trabalhadores sejam supérfluos para as organizações, a inibição de distribuir dividendos por parte das empresas, ficando os sócios impedidos de partilharem, ainda que parcialmente, os lucros das sociedades em que investiram.
Estranha-se, mesmo, que Catarina Martins não tenha sugerido, igualmente, que as empresas se vissem obrigadas a admitir um trabalhador por cada outro que se reformasse, que os salários dos administradores e gerentes fossem congelados ou mesmo reduzidos, que não se permitisse o recurso à insolvência por parte das empresas que se encontrassem em situação económica difícil, que os arrendatários pudessem sem limite deixar de pagar as suas rendas e que os grandes aforradores se vissem impedidos de receber os rendimentos das suas poupanças.
Num momento em que vivemos mergulhados numa crise quase sem precedentes a nível internacional, é caso para dizer, 40 anos mais tarde, que “Os deuses devem estar loucos”.