O ócio não é bom conselheiro, menos ainda quando vivido em confinamento forçado como aquele que experimentamos pela primeira – e esperemos que única – vez nas nossas vidas. Se ao estado ocioso, acompanhado de um isolamento que nos testa a paciência, somarmos a companhia das redes sociais, muitas vezes a única, verdadeiras destilarias de ódios e ressentimentos vários, temos a receita perfeita para a polémica tão acalorada quanto fútil.

Foi esta tempestade perfeita que gerou o acrisolado debate sobre as homenagens ao militar português de origem guineense Marcelino da Mata e a recuperação dos brasões de buxo da Praça do Império. Em comum os dois temas tinham o passado colonial português, sempiternamente debatido numa guerra de trincheiras entre duas interpretações da História pátria igualmente comprometidas pela ideologia. Ambas manipuladas e manipuladoras, porque servindo propósitos políticos e não o estudo e reflexão ponderados sobre os cinco séculos em que o território português se expandiu por diversos continentes, geraram somente ruído, inimigo do esclarecimento.

Existem e existirão sempre abordagens de direita e de esquerda do processo histórico. Não é possível, nem seria desejável, uma interpretação do passado bacteriologicamente pura. Ambas são válidas e, desde que guiadas pela honestidade intelectual, nenhuma é mais válida do que a outra. Porém, perdem valia quando pretendem manipular o passado, ora com propósitos apologéticos, ora de condenação, propósitos que dominaram a discussão.

A pretexto deste debate, foram feitas propostas espantosas como a demolição do Padrão dos Descobrimentos ou a remoção dos painéis que decoram o Salão Nobre da Assembleia da República. Num país jamais capaz de ser suficientemente original para criar uma ideologia ou movimento político, uma vez mais alguns recorreram à cópia das ideias em voga lá fora propondo, com zelo talibã, a destruição do que consideram ser símbolos de opressão, esquecendo desde logo que – independentemente das conotações que lhes atribuam – são, antes de mais, obras de arte, e a prática da sua eliminação tem – recorde-se – precedentes tenebrosos, que é imperioso não repetir.

Tais propostas insanas resultam de uma inane deriva justiceira, fruto de uma arrogância intelectual muito característica da contemporaneidade: cada geração atribui-se a missão de refundação do Homem e da Sociedade, imaginando um mundo novo, com sacrifício do passado, quase invariavelmente encarado como fundamentalmente bárbaro. É assim desde o séc. XVIII, quando os intelectuais, como referiu o jornalista e historiador Paul Johnson no seu livro “Intelectuals”, se presumiram substitutos dos deuses.

A pretensão de definir e fixar uma interpretação do passado, destruindo os seus legados seria, além do mais, um acto de egoísmo, pois impediria que as gerações vindouras fizessem a sua interpretação de um pretérito que é de todos, não só dos que estão hoje vivos, mas também dos que amanhã viverão. A História não tem donos e os monumentos que a testemunham também não.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.