A inversão da posição do Tribunal Constitucional (TC) em relação à constitucionalidade do anonimato dos dadores de gâmetas na procriação medicamente assistida (PMA) provocou um grande desconforto sobre os seus motivos. É que em 2009 o colectivo do TC declarou a constitucionalidade desse mesmo anonimato. E a única diferença face ao que acontecia em 2009 é que a PMA deixou de ser um direito restrito a casais heterossexuais com problemas de fertilidade para se estender a todas as mulheres, independentemente da sua opção sexual e do seu estado civil.

Os deputados do CDS e do PSD que agora pediram a fiscalização da lei invocaram, em suposto conflito com o direito ao anonimato dos dadores,  o direito das pessoas nascidas por PMA à sua identidade pessoal, de que decorreria, defendem, o direito ao conhecimento da sua ascendência genética. Invocam ainda o direito à historicidade pessoal que, defendem, implica o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores.

Mas a verdade é que esta súbita preocupação com a identidade de dadores surge quando a concepção através de PMA deixou de estar necessariamente enquadrada no modelo de família tradicional, do casal heterossexual. Ainda há meses, quando se discutia no Parlamento a redução do prazo ante-nupcial e a eliminação da presunção de paternidade do marido da mãe, não havia aqui questão. Desde que houvesse um pai do sexo masculino legalmente reconhecido, pouco importava a origem genética da pessoa gerada.

Vínculos biológicos e sociais

Os juízes do TC deram razão, neste ponto, ao pedido de fiscalização da lei, o que parece injustificável até pela incoerência encerrada no facto de que o dador, não é, perante a lei, nem um pai, nem titular de quaisquer direitos ou deveres da paternidade.

Alegam que o fim do anonimato deve decorrer de um maior direito dos filhos da PMA ao conhecimento da sua origem, que se joga aí um direito pleno à sua identidade, que se não for assim há um tratamento desigual face aos filhos gerados sem PMA. Só que estas implicações não se seguem.

Desde logo, não conhecer a identidade do dador dos gâmetas utilizados numa PMA não significa não poder conhecer o progenitor, situação que discriminaria os filhos das PMA diante das outras formas de procriação. Significa antes que não se reúnem aqui as condições razoáveis para que se possa falar de pai biológico, progenitor ou ascendente. Mas que condições podem ser essas? A existência de um vínculo social não cobre todas as situações, pois não abrange circunstâncias em que o que importa é a relação biológica, como a que se constitui entre uma gestante e um feto.

Mas, tal como no plano social, o que pode vincular no plano biológico é exactamente a existência de um relacionamento, que, a verificar-se, deve ser reconhecido na esfera dos direitos e deveres. O critério decisivo é a verificação de relacionalidade, que tendo dimensões sociais e biológicas, deve considerá-las, sem excepção, para a presunção de progenitura. Por outras palavras, primeiro, a fronteira conceptual entre o que é e o que não é relevante para uma relação de progenitura não está na diferença entre social vs. biológico, mas em verificar-se, ou não, um relacionamento. E, em segundo lugar, não existe relacionamento se não existir algum tipo de influência entre sujeitos individuais de senciência.

À luz desta consideração, compreende-se por que razão uma gestante deve poder fruir de alguns direitos de progenitura na proporção do relacionamento que inequivocamente se fez numa gestação. Já o mesmo não é válido para um dador de esperma, sem qualquer relacionamento, de base social ou biológica, com o feto.

A concepção que aqui se apresenta não é pouco ampla. Nem sequer exige uma comparência ou encontro para que se verifique um relacionamento. Este pode ter lugar mesmo na forma de uma ausência, como sucede com os filhos que procuram conhecer um progenitor que por alguma razão ficou ausente. Há uma dimensão relacional até para com um pai biológico que não fez mais do que engravidar a mãe, que não podemos querer que se verifique com um mero dador de gâmetas. É forçar um laço que, muito objectivamente, não existe.

Nem biologismo nem tradicionalismo

Este requisito de uma história relacional dá-nos um espectro bem abrangente da possibilidade de existência de uma paternidade ou maternidade. Por que razão ir mais longe e buscar também uma história causal, que é só o que existe numa doação de gâmetas?

As razões não parecem relevantes e não deveriam ter sido atendidas pelo TC, de forma mais ou menos implícita: ou um biologismo que identifica genes de um gâmeta com identidade, prejudicando uma concepção humana de identidade; ou um tradicionalismo que se obstina num modelo de família que não se permite dispensar a figura masculina progenitora; ou um pouco das duas, fazendo da vida biológica e dos seus processos um pretexto para manter sob tutela costumes novos.

Tudo isto que fica dito não implica uma perspectiva relativizadora sobre a protecção da identidade genética, que deve cada vez mais constituir um direito essencial diante dos avanços das aplicações da ciência genética, por exemplo, da possibilidade de uma clonagem do genoma das pessoas. Simplesmente, a evocação daquela protecção para justificar o direito ao conhecimento da identidade do dador dos gâmetas é exorbitante. A identidade genética resume-se ao genoma, nela não tem qualquer papel  identitário o nome e a vida do seu dador.

Quem se posiciona pelo fim do anonimato dos dadores de gâmetas evocando um direito à identidade, deve, na verdade, e de forma coerente, constituir-se objector a um tipo de dádiva descomprometida, e deve, em consciência, sentir-se mais confortável preterindo a PMA à adopção de crianças ou mesmo a resignar-se à infertilidade. Mas, na forma de lei, é preciso posicionarmo-nos além da sensibilidade pessoal própria de cada um.

Vencer a lógica do estigma

Esta defesa do anonimato dos dadores distrai-nos, contudo, de um aspecto que pode ser mais relevante para o direito de cada um de conhecer a sua origem. Se, no caso da gestação de substituição, o TC considera que o sigilo tem de ser limitado para proteger o direito da pessoa gerada conhecer a forma como veio ao mundo, o mesmo não sucede nos casos de inseminação artificial. Aqui, pode contar apenas a vontade dos pais. Diz Clara Sottomayor na sua declaração de voto no acórdão do TC que “as famílias que recorrem à PMA heteróloga geralmente não divulgam aos filhos o modo de conceção (…), devido ao interesse da criança na prevalência da parentalidade social sobre a identidade genética, por falta de apoio dos serviços de saúde para o efeito e porque a cultura dominante  estigmatiza o recurso a estas técnicas reprodutivas, podendo a sua divulgação gerar conflitos familiares aos envolvidos.”  Ora, estas razões suscitam dúvidas.

Em primeiro lugar, por uma questão de boa-fé legal. Uma lei não deve servir para dar cobertura a segredos e equívocos. Se quem foi concebido da forma até hoje mais comum tem à partida razões para presumir que conhece a forma como foi concebido, não é justo nem equitativo que quem foi concebido por inseminação artificial seja induzido a acreditar que a sua forma de concepção foi outra. Curiosamente, onde há maior risco é precisamente no quadro de uma família heterossexual, em que mais facilmente se toma um dos modelos de procriação como dado adquirido. Numa família monoparental ou de casal homossexual, as questões acerca da origem podem, à partida, surgir de maneira mais evidente.

Em segundo lugar, para não legitimar o preconceito e estigmatização. Não faz sentido que quem recorre à PMA acompanhe depois um real ou suposto preconceito social acerca desta forma de concepção, escondendo-a. Desde logo, isso parece atentar contra a dignidade dos filhos assim gerados, que têm o direito a que não recaia sobre a sua origem o mais ténue vestígio de um estigma. Além disso, é no segredo calado que se perpetuam os preconceitos.

Em terceiro lugar, por uma razão de consistência. O direito ao conhecimento da identidade genética está garantido na lei (e em nada depende do nome de dadores de gâmetas), mas o seu exercício depende, obviamente, do conhecimento sobre a forma como se veio ao mundo, o que não está garantido na lei. Não deveria na certidão de nascimento, para além dos nomes das mães e dos pais, constar um código numérico que identificasse, sem qualquer associação com a pessoa dadora, o material genético de que são portadoras as pessoas nascidas com recurso à PMA? Isto para que não aconteça que o acesso a esta informação esteja tão dependente de pais e mães terem decidido dá-la a conhecer aos seus filhos.

Importante é avaliar o sentido último como não pode deixar de ser interpretada a deliberação do TC. Esta reviravolta do entendimento dos juízes tem pouco que ver com a inconstitucionalidade do que antes já haviam considerado constitucional. Tem que ver sim com a percepção de uma reviravolta – a que chamam mudança de paradigma – pela qual a PMA deixou de ser apenas um método de recurso, para situações de infertilidade, passando a opção inteiramente válida para que configurações familiares novas e cada vez mais socialmente disseminadas possam desenvolver-se sem discriminação ou estigma. Cabia ao TC garantir essa justiça, não cabia ao TC dizer que mudança social devemos ou não ter. Muito menos pará-la, emendá-la, ao ponto de subscrever uma retroactividade vertiginosa.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

*Artigo escrito em coautoria com Vera Tavares, designer gráfica (Tinta-da-China)