Há uns meses atrás, a procurar algo para ver no Netflix, dei de caras com “Behind the Curve”, um documentário sobre os flat-Earthers, as pessoas que acreditam na inacreditável “teoria” de que a Terra não é um globo, mas um gigantesco disco plano estacionário rodeado de um anel de gelo.

O “herói” de “Behind the Curve” é Mark Sargent, um Bill Murray soundalike que talvez explore a credulidade dos flat-Earthers para obter fama, reconhecimento e até amor e amizades na comunidade, mas que indubitavelmente é uma celebridade no seu seio. E o filme mostra também alguns desses flat-Earthers, cuja autenticidade é mais do que clara.

Ao longo de “Behind the Curve”, vemos pessoas desconfiadas dos “poderes estabelecidos”, que dizem que quanto mais educadas as pessoas estão, mais condicionadas são pelo “sistema” que os faz acreditar no que querem que as pessoas acreditem. Que julgam que a “mentira” da Terra redonda está “no centro” de uma “teia-de-aranha” de “conspirações” dos “poderes que não deveriam ser”, que se estende (quase escrevi “englobam”) aos alimentos geneticamente modificados, à “transformação” dos “rapazes em raparigas e as raparigas em rapazes” ou à “encenação” de “aviões a atravessarem edifícios”.

Que dizem que como “não conseguimos sentir o movimento da terra”, isso só pode querer dizer que o planeta não se está a mover, ou que por vermos o que está na outra margem de um rio decorre que a Terra não tem qualquer curvatura. Que vão ter com Sargent numa convenção de flat-Earthers e o afogam com a sua adoração, agradecendo-lhe encarecida e comovedoramente o seu papel na comunidade. Que se afastam dos seus entes queridos por causa da sua convicção.

O filme entrevista também alguns cientistas, perguntando-lhes acerca do que acham da existência de flat-Earthers. Acima de tudo, estes mostram-se simultaneamente fascinados e aterrorizados com o fenómeno, procurando percebê-lo e arranjar uma forma de chegar aos flat-Earthers e explicar-lhes por que razão estão enganados. Esse misto de fascínio e horror foi também a minha reacção ao ver “Behind the Curve”.

As cenas mais impressionantes centram-se numa série de experiências realizadas por uns tais de Jeran Campanella e Bob Knodel, em que procuravam testar cientificamente a veracidade da sua teoria. Knodel diz que se a “Terra completa uma rotação a cada 24 horas, isso significa que a cada hora tem de girar 15 graus. E se um giroscópio estiver colocado em qualquer ponto da terra, irá sofrer um desvio”, e com um aparelho com sistemas de medição suficientemente precisos, será possível verificar se o giroscópio sofre o desvio que deverá sofrer caso a Terra seja redonda e gire 15 graus por hora.

Quando fez a experiência e efectivamente verificou que o giroscópio sofrera esse desvio, Knodel pura e simplesmente não aceita o critério que ele próprio colocou. De repente, o desvio não era – como ele havia dito – o resultado natural da rotação da Terra, mas algo que “obviamente não estávamos dispostos a aceitar”, e que requeria “formas de refutar” aquilo que a sua própria experiência tinha comprovado. Como seria de esperar, a cada tentativa de “refutar” essa conclusão, Knodel e Campanella acabam sempre por comprová-la. E como seria de esperar, de cada vez que a confirmam, recusam-se a aceitar essa conclusão.

O processo psicológico que faz com que os flat-Earthers rejeitem toda e qualquer evidência que demonstre inequivocamente que a sua convicção está errada é o mesmo que leva alguém a acreditar que as imagens da chegada do Homem à Lua não passam de um filme realizado por Stanley Kubrick num estúdio em Inglaterra, ou que as crianças não devem ser vacinadas, ou o que faz com que um eleitor apoiante de um determinado político o continue a defender quando esse político faz o contrário do que levou o eleitor a apoiá-lo.

Isto é, o cérebro humano tem a tendência de valorizar a informação que confirma as nossas presunções, e mais, a interpretar todo e qualquer facto como uma confirmação da validade daquilo de que já estávamos convencidos, mesmo quando na realidade se verifica o contrário.

Uma vez adquirida uma convicção acerca do que é cientificamente verdadeiro, ou aderindo a um projecto político, o cérebro humano tende a interpretar a realidade de acordo com a percepção que tem dela, tornando-se cada vez mais seguro das suas convicções mesmo quando não há razão para isso. O método científico, por exemplo, tenta escapar a esta armadilha cognitiva, mas como se vê pelos casos de Knodel e Campanella, até quem o procura seguir está sujeito à falibilidade humana, e é precisamente por isso que o escrutínio e o debate públicos são importantes, de forma a identificar e expor esses erros ou incoerências.

A dada altura de “Behind the Curve”, uma das cientistas entrevistadas, Hannalore Gerlin-Dunsmore, diz que “se não estivermos dispostos a conversar com eles, não os poderemos levar a mudar”. Outro cientista, Lamar Glover, concorda, dizendo que os flat-Earthers são potenciais cientistas perdidos”, pessoas “com curiosidade” e com uma atitude que “poderia ser benéfica para a ciência” se fossem mais “letrados cientificamente”.

Mas por muito que Gerlin-Dunsmore e Glover tenham razão quanto aos perigos de “abandonar” pessoas curiosas na ignorância, quando alguém opta pela cegueira voluntária uma vez confrontado com a evidência, é impossível haver um diálogo que mude a sua opinião. Ora, é isso que um número aparentemente crescente de pessoas faz em relação a um crescente número de questões.

Se acreditar que a terra é plana é, em si, inofensivo, já acreditar que as crianças não devem ser vacinadas é algo de extraordinariamente perigoso. E o facto de não haver qualquer possibilidade de convencer as pessoas não só de que estão erradas, mas de que esse erro é perigoso para elas e para terceiros, deve preocupar-nos a todos.

Não só porque nos expõe a esses perigos, mas porque corrói a velha convicção, no coração das nossas sociedades democráticas e liberais, de que a discussão pública e livre dos mais variados assuntos é o caminho para se descobrir a verdade e fazer as pessoas mudarem de opinião se os factos assim o determinarem. A dois passos da corrosão dessa convicção fica a complacência para com a censura e o autoritarismo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.