Fiquei a saber recentemente que um par de sapatos de salto alto com sola vermelha é muito mais do que um sinal de gosto duvidoso para o calçado. Umas solas vermelhas gritam “Christian Louboutin” alto e bom som. Foi a minha mulher que mo disse. Perguntei-lhe se sabia qual era a marca dos sapatos da sola vermelha e a resposta foi “Louboutin, toda a gente sabe que é a Louboutin”. (À resposta seguiu-se a pergunta “Porquê, vais oferecer-me uns?” e eu apressei-me a mudar de assunto)
É por toda a gente menos eu saber que as solas vermelhas são da Louboutin que o Tribunal de Justiça da UE deu razão ao estilista francês num diferendo com a Van Haren, empresa holandesa que vendia sapatos de salto alto com sola vermelha a preços mais em conta. O Tribunal não pôs as coisas nestes termos, mas no fundo é isto.
A Louboutin, que já havia registado como marca sua a cor vermelha (especificamente, o Pantone 18-1663TP) aplicada à sola dos sapatos de salto alto, intentou uma ação contra a Van Haren. Em sua defesa, a Van Haren alegou que a marca era nula, porque uma cor, enquanto característica de um produto, não deve poder ser registada. Num outro litígio envolvendo a Louboutin, a Yves Saint Laurent defendeu-se de forma semelhante, notando que o vermelho é cor comum no calçado e que já se usava nos tempos de Luís XIV e da Dorothy do Feiticeiro de Oz.
Em meia dúzia de lacónicos parágrafos, o Tribunal disse que uma cor aplicada à sola de um sapato pode ser registada. A preocupação do Tribunal, parece-me, foi decidir o caso concreto da Louboutin de forma justa. (“forma justa” lembra-me o poema da Sophia e lembra-me que queria comprar a obra poética dela, que estava com um preço simpático na Feira do Livro).
A Van Haren podia ter escolhido lacar as solas dos seus sapatos de outra cor qualquer. Escolheu o vermelho-Louboutin para se aproveitar da reputação e do investimento da Louboutin. Porque quem quer comprar uns stilettos com sola vermelha não quer apenas comprar uns stilettos com sola vermelha. Quer comprar uns Louboutin, mesmo que não sejam da Louboutin. Quer que os seus pés digam setecentos euros, mesmo que esses setecentos euros tenham custado apenas umas dezenas.
É verdade que o registo vem permitir que a Louboutin monopolize um ornamento e restrinja a margem de liberdade das empresas concorrentes, que deixam de poder usar aquela cor em solas de sapatos de salto alto. Mas trata-se de um ornamento cujo valor para a maioria dos consumidores resulta, hoje em dia, do facto de identificar a Louboutin. E é por isso que deve poder ser registado pela Louboutin.
A decisão não deve ser lida como autorizando os produtores de calçado a registar cores aplicadas a solas a torto e a direito. O risco de se escancarar as portas ao registo é o de esgotar o leque de cores disponíveis, com prejuízo para a concorrência entre produtores. O registo como marca, que é potencialmente perpétuo, só deve ser admitido em casos excecionais, como o da Louboutin, em que a cor passou a funcionar como identificador claro da origem do produto.
Na verdade, tinha-me dado mais jeito que a decisão do Tribunal tivesse sido em sentido contrário. Era da maneira que podia chegar a casa com uns Louboutin-sem-ser-Louboutin para a minha mulher. Assim, acabei a comprar-lhe a obra poética da Sophia. Estava com um preço simpático e ao menos era original.
Nota: O autor foi consultor do Governo Português no processo C-163/16, Louboutin, junto do Tribunal de Justiça da UE. O presente artigo reflete apenas a sua opinião pessoal.