É voz popular em Portugal dizer-se mal do Estado: o Estado é ineficiente, o Estado é corrupto, o Estado é burocrático, o Estado suga as pessoas com os impostos e abafa a economia. Acto contínuo, diz-se mal dos colaboradores do Estado: os políticos são uns oportunistas corruptos, os funcionários públicos uns preguiçosos bem pagos e protegidos.

Este tipo de preconceito contra o Estado e seus servidores tem muitas explicações. Desde o peso que o Estado tem em Portugal (nomeadamente durante a ditadura, em que o Estado era controlador, corrupto e pouco prestável), passando pela fraca iniciativa privada (que nunca se soube impor enquanto tal, independente do Estado, nem criar boas ofertas de emprego em quantidade), até ao rendimento medíocre dos portugueses e suas baixas qualificações, que fazem com que certas remunerações de funcionários públicos sejam vistas como elevadas, quando só o são comparando com funções exercidas por pessoas menos qualificadas no sector privado.

Na realidade, o funcionalismo público em Portugal até foi, em democracia, o mais rápido elevador social, ao permitir que pessoas de classes baixas, que estudassem, conseguissem aceder a profissões de classe média (médicos, professores, juízes, enfermeiros, etc.).

Acontece que este preconceito tem sido utilizado em termos políticos (por exemplo, por Sócrates e Passos Coelho), pondo os trabalhadores do sector privado contra os do sector público, pelos supostos privilégios dos últimos.

É verdade que há algumas discrepâncias entre o sector privado e público que não fazem sentido: o número de horas semanais devia ser o mesmo (35 horas para todos) e o sector público devia ser mais sensível às condições da procura e oferta na determinação de salários e garantias laborais.

Mas o alimentar da clivagem entre trabalhadores do sector privado e os do público desvia o foco das verdadeiras clivagens: os trabalhadores de luxo e os outros.

No sector privado, temos esse luxo nos membros dos conselhos de administração (CA) de bancos, grandes empresas, grupos de comunicação social e sociedades de advogados (alguns aparecem nos CA todos), nos cargos de direcção dessas empresas, ou em certas funções como apresentadores da televisão.

Mas, se quisermos pensar nos privilegiados do Estado, em vez de olharmos para professores, médicos, enfermeiros ou polícias (profissões fundamentais e mal pagas em Portugal), temos que olhar, por exemplo, para: conselhos de administração das empresas públicas (onde se incluem os hospitais EPE, a CGD ou a REN) e de diferentes instituições e delegações estatais (como o Banco de Portugal, CMVM, CCDR, entidades reguladoras e fundações e institutos públicos), tantas vezes com salários muito superiores ao do Presidente da República; representantes portugueses no estrangeiro (de embaixadores e diplomatas a enviados para a ONU, OCDE, Banco Mundial, Banco Central Europeu, FMI ou eurodeputados e eurocratas, tudo trabalhadores de organizações públicas, muitos com salários mensais de dezenas de milhares de euros, livres de impostos ou com taxas melhores que as portuguesas); Professores Catedráticos, que nunca vivenciaram a verdadeira precariedade no ensino superior, nem produziram o que agora exigem aos que avaliam, e ganham desproporcionadamente face aos jovens investigadores, professores auxiliares ou bolseiros, que são precários, subordinados e mal pagos).

Ou seja, aquilo que diferencia os benefícios laborais em Portugal não é tanto ser-se do público ou do privado, antes ser-se de luxo ou não. No que respeita ao luxo no sector privado, pode dizer-se que são as leis do mercado. Só que, nalguns casos, não é bem assim: monopólios como o da EDP ou da REN, ou oligopólios como nas telecomunicações e nas empresas de televisão, só conseguem pagar certos ordenados porque são protegidas pelo Estado (veja-se o que Pinto Balsemão diz, sempre que se fala no Estado atribuir mais uma licença de TV).

No caso do luxo no Estado, esse devia ser fortemente regulado e combatido. Um Estado que não é rico não pode pagar salários milionários, por exemplo, a apresentadoras da RTP. Nem a pilotos e administradores da TAP, se a empresa ficar pública. Nem a administradores da CGD.

Infelizmente, muitos políticos usam estes lugares para ganharem o dinheiro que não ganharam enquanto deputados ou governantes, pelo que não lhes interessa mexer nisso. Mas o que fazia sentido era o inverso: ganhar-se mais enquanto deputado ou governante (quando se é mais escrutinado), menos enquanto burocrata de luxo (que vive no conforto da discrição).

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.