Depois de, neste espaço, ter elogiado o feito de António Costa, na superação do dilema de Hamlet a respeito das touradas, aproveito o longo sossego de um voo até Porto Alegre para cumprir um dever de consciência. Sublinhe-se apenas Porto Alegre e não Portalegre, que esta pacata cidade ainda não tem aeroporto e nunca é bom confundir a estrada da Beira com a beira da estrada.

Mas dizia eu que não ficaria de bem com a minha consciência se não viesse aqui prestar justa homenagem – ainda que um pouco tardia – aos senhores deputados que, tem-se vindo a saber aos poucos, concretizaram um antigo sonho da humanidade: o dom da ubiquidade.

É certo que, neste caso, há algumas dúvidas técnicas que impedem o registo dos eventos em causa nos anais da Física. É que ainda não é claro se o par Silvano e Feliciano, sem desprimor para os demais, almejaram simplesmente o feito de estar e não estar no Plenário da Assembleia da República, ou se foram mais longe e estiveram em dois lugares distantes no mesmo preciso momento: no sobredito Plenário e, por exemplo, em Alijó, no Bombarral ou em Penha Garcia.

De acordo com os cientistas, há de facto alguma diferença entre as duas hipóteses. Só a segunda corresponde ao conceito de ubiquidade proprio sensu. A primeira corre o risco de resvalar para um outro fenómeno bem mais prosaico, como é estar sentado na bancada do Parlamento mas com a cabeça no ar. Ou, pelo contrário, com a cabeça em baixo, a passar pelas brasas ou a retocar a pintura das unhas.

Seguro parece ser que, em qualquer dos casos, a proeza dos nossos deputados foi alcançada com a ajuda de mão amiga, senão mesmo de amigas. O que não desvaloriza de todo o sucedido. Bem pelo contrário, a capacidade para trabalhar em equipa está entre as soft skills mais decisivas para qualquer empregador e nós – eleitores/empregadores dos senhores deputados – devemos ficar satisfeitos com o facto de os nossos representantes revelarem essa importante capacidade. Mesmo para os mais céticos, numa sociedade em crise de valores, é bonito ver como a amizade ainda está em alta entre os deputados da nação.

Bonito de ver foi também a modéstia destes nossos heróis-deputados, que de todo não queriam assumir publicamente o seu contributo para o legado português na ciência. Só a muito custo lá foram reconhecendo o que tinham feito, depois de pressionados pelos jornais, por sua vez sensibilizados por alguns colegas de bancada. O que confirma que, de todos os espíritos santos que por cá andavam, o único que continua a dar cartas é mesmo o “espírito santo de orelha”.

Confirmadas as notícias, o júbilo contagiou todo o Parlamento, apenas com uma pequena picardia entre os líderes de duas bancadas: “os meus deputados são melhores que os teus”; “não são nada, os meus é que são os melhores”; e às tantas já andavam as famílias ao barulho, porque torna e porque deixa. Um pouco pueril, é certo, mas sabe-se como são estas coisas da democracia partidária, em que todos querem ganhar sempre e até já sucedeu alguns quererem ficar com os louros das obras dos outros.

Mas tudo há de passar, se Deus quiser, com a intervenção paternal dessa figura tutelar do regime que é o senhor Presidente da Assembleia. Com ele, nós e a transparência podemos sempre dormir descansados.

Pena é – e esse mal não parece ter remédio – que os portugueses estejam sempre a postos para a maledicência, duvidando da capacidade dos deputados ubíquos para se concentrarem a fundo no seu trabalho no Plenário. Não há qualquer evidência de que isso possa acontecer. Até parece que os deputados andam para aí a votar leis à toa. Sei lá eu, a introduzir vacinas no plano nacional de vacinação sem ouvir os peritos na matéria. O que seria?

Enfim, parece que os políticos tugas estão mesmo em força nisto do “dois em um” e do “um em dois”. Não é apenas no turismo que somos os maiores. Depois do famoso ser e não ser contra as touradas, do nosso Primeiro-Ministro, foi agora a vez de os deputados estarem e não estarem ao mesmo tempo – ou estarem em dois lugares no mesmíssimo tempo.

Para uma próxima oportunidade fica a crónica do homem duplicado: não o do livro do Saramago, mas o homem do Euro-Grupo e do Terreiro do Paço. Aquele que, qual Olívia-patroa e Olívia-costureira, dá ordens lá de fora sem nenhuma intenção de as cumprir cá dentro.