1. As recentes notícias sobre más práticas no uso dos subsídios atribuídos aos Deputados para o normal exercício das suas funções, convocam uma reflexão mais alargada sobre o tema e fazem-me voltar a escrever sobre o sistema partidário que temos.
Como ponto prévio, é imperativo, e de elementar justiça, dizer que a maioria dos Deputados exerce o seu mandato com dedicação, voluntarismo e seriedade. As generalizações fáceis só descredibilizam os temas sérios e ajudam a que nada se resolva, deixando a ambiguidade minar as instituições.
É importante compreendermos como funciona o sistema de ajudas de custo e demais subsídios. Para facilitar, podemos comparar com a prática empresarial. Numa empresa privada, o pagamento de ajudas e subsídios é feito contra comprovativo da viagem e da representação, já no Parlamento, a atribuição é feita com base no calculo automático estimado com base nos dias de presença do mês, partindo do pressuposto que o Deputado se desloca à sua residência e ao seu circulo de eleição numa base semanal. A maioria dos Deputados faz isto mesmo; com estes o sistema funciona normalmente.
O problema coloca-se quando o Deputado não faz as referidas deslocações semanais e recebe como se as fizesse. Se as não faz, não teria direito a recebê-las. Pior, se não faz deslocações com a regularidade prescrita ao seu círculo de eleição, está a incumprir com o exercício do cargo e a defraudar os eleitores que lhe confiaram o voto. Há uma violação do compromisso político da função que, em meu entendimento, é ainda mais grave que a questão formal.
Sem receio de exagerar, diria que entre a esmagadora maioria dos Deputados prevaricadores, se encontram os Deputados de Lisboa, amigos das direcções nacionais dos diferentes partidos e “figuras ilustres” que as ditas direcções distribuem por todo o país na chamada “quota nacional”. Se é quase impossível ver alguém do Porto encabeçar uma lista de Deputados em Lisboa, é banal ver as listas de todos os distritos enxameadas de lisboetas e amigos vários dos directórios partidários. Pessoas sem ligação real e substancial aos distritos onde se fazem eleger e que, por consequência, poucas vezes lá voltam, sem ser em campanha.
Se há grande voluntarismo em ser eleito pela “província”, nunca assistimos a nenhum movimento de vontade de devolução dos subsídios indevidamente recebidos. A juntar a estes, há também os Deputados sedentários; não são da capital, mas rapidamente se acomodam à capital, desenvolvendo uma incapacidade de deslocação fora dos corredores do poder, que os impede de regressar semanalmente ao povo que lá os pôs.
A solução seria muito fácil, e carece apenas de vontade política. Os subsídios são justos e proporcionais ao fim a que se destinam. O método de atribuição é que deveria ser mudado, passando a ser atribuídos, como em qualquer empresa, mediante comprovativo das deslocações feitas. Assim, ficaria muito mais transparente a dedicação e cumprimento político dos Deputados.
A par disto, deveriam os partidos democratizar a escolha dos seus candidatos, devolvendo voz e decisão às estruturas e forças vivas das diferentes regiões do país, reforçando ligações e representatividade real. Este pacote, de apenas duas medidas, seria um meio dissuasor da lisboetização do país pelos directórios partidários, mal que corrói todos os partidos, sem excepção, fomentando o divórcio entre eleitores e eleitos.
Nota: Este texto não é sobre Carlos César, ou qualquer dos Deputados insulares que receba, ou tenha recebido, o respectivo subsídio em duplicado. Aí, estamos perante uma desonestidade activa, formal, voluntária e sem justificação aceitável. Não há preguiça ou negligência, há uma iniciativa concreta de desonestamente tirar partido de uma sobreposição de contrapartidas.
2. O Maio de 68
Um segundo parágrafo, muito pessoal. Faço hoje 50 anos. Faz também hoje 50 anos o Maio de 68.
A minha vida tem-se revestido de normalidade, sem grandes feitos a assinalar, a não ser a vontade de tentar cada novo dia ser um bocadinho melhor do que fui na véspera, de me obrigar diariamente a prestar contas à minha consciência e a Deus. Se assim conseguir continuar, no segundo meio século que agora inicio conseguirei ir analisando e escrevendo também um bocadinho melhor de cada vez, aproveitando melhor este espaço nesta caminhada do operário em construção, sempre consciente da generosidade de quem lê, aprecia e critica.
Se tenho perfeita consciência da minha pequenez no mundo, não tenho menos noção da importância do dia em que nasci. Não por mim, claro. O 8 de Maio de 68 foi o dia mais marcante da segunda metade do século XX. Infelizmente, pelas piores razões. O que parecia um dia de explosão de vitalidade juvenil, mais não foi que o eclodir de uma semente daninha que vinha germinando desde 1789.
De novo em Paris, um corte brutal com os padrões sociais estabilizados e estáveis, a impossibilidade de evoluir respondendo ponderadamente à realidade e ao tempo. As revoluções não querem evolução, querem corte e reconstrução. O Maio de 68 protagonizou esse corte, eclodiu ali, mas vinha de longe, de muito longe, da rede jacobina que perseverou até à nova oportunidade de provocar a ruptura e impor o seu modelo social, ou melhor, o seu modelo associal.
Passados 50 anos, sofremos todos os dias as consequências do 8 de Maio de 68. As várias formas de atentar contra a vida, seja o aborto ou a eutanásia, o ataque à família, a ditadura de género, as barrigas de aluguer, a liberalização das drogas, enfim, o mais profundo relativismo ético. Não se vê modo de inverter esta tendência auto-destrutiva que, faz hoje 50 anos, mina o mundo ocidental, condenando-o ao declínio e fim desejados pelos jacobinos.
Talvez esta coincidência, esta partilha de um mesmo dia, me convoque, como fez sempre até hoje, a combater na minha pequenez todo o mal que eclodiu nesse dia. Que venham mais anos de luta, que haja um dia quem ganhe a causa justa.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.