Era uma vez um continente que tentou salvar-se da sua própria memória. Um continente que, de tanto sangrar, julgou ter aprendido a lição da catástrofe. Como Ulisses atado ao mastro, a Europa amarrou-se à razão e ao direito para não voltar a ceder ao canto das sereias autoritárias. E, no entanto, aqui estamos. Setenta anos depois do Tratado de Roma, entre regulamentos e fundos estruturais, o velho continente acorda para um cenário inquietante: o retorno do irracional — não como explosão, mas como erosão. Não se trata de um regresso dos bárbaros às portas de Roma. O que inquieta é que os novos bárbaros entraram pelas urnas, sob aplauso.

A Europa encontra-se hoje num ponto de inflexão. Um momento em que a sua arquitectura política e a sua alma civilizacional enfrentam ameaças internas mais perigosas do que muitos inimigos externos: a ascensão da extrema-direita, sob diversas máscaras, geografias e dialectos, mas com uma pulsão comum — desmontar os alicerces do liberalismo democrático a partir de dentro.

Na Roménia, o partido AUR cresceu à boleia de uma retórica ortodoxa-nacionalista e anti-sistema. Na Polónia, embora o PiS tenha perdido o governo, mantém influência e conta agora com um presidente eurocético. Nos Países Baixos, o governo caiu perante a pressão da extrema-direita, que se afirmou como força decisiva. Em França, os prognósticos para 2027 são claros: Marine Le Pen ou Jordan Bardella poderão chegar ao Eliseu. Na Alemanha, a AfD cresce sobretudo no Leste e a discussão sobre a sua possível ilegalização já não é marginal. Em Itália, Giorgia Meloni governa sem sobressaltos, com retórica nacionalista institucionalizada. Na Hungria, Viktor Orbán continua a ser referência para os partidos eurocéticos do continente. E mesmo em Portugal, onde se dizia que “isso cá não pegava”, o Chega consolidou-se como segunda força política, explorando os ressentimentos acumulados. No Reino Unido, embora fora da União, o Reform UK de Farage capitaliza a nostalgia e o cansaço pós-Brexit, empurrando o debate para trincheiras cada vez mais estreitas.

O que explica este fenómeno aparentemente transversal? Antes de tudo, um falhanço político. O centro, que se habituou a governar por inércia, deixou de oferecer respostas. Demasiado tecnocrático, muitas vezes moralista, raramente mobilizador, o centro político perdeu a capacidade de escutar. E em política, quando se deixa de ouvir, outros ocupam o espaço do discurso — nem sempre com melhores ideias, mas quase sempre com maior convicção.

A extrema-direita prospera onde se acumulam frustrações não resolvidas. Onde a globalização deixou vazios — económicos, culturais, identitários. Onde as promessas da modernidade foram desmentidas pelo abandono das periferias, das zonas rurais, dos operários e da pequena classe média. E há hoje uma Europa esquecida que contempla Bruxelas como se olha uma peça de teatro encenada noutra língua — reconhecendo os gestos, mas não compreendendo o enredo.

É esta Europa, ferida e cínica, que se torna terreno fértil para discursos radicais. A extrema-direita oferece narrativas simples para problemas complexos: “fechem as fronteiras”, “voltemos ao que era nosso”, “limitem os direitos dos outros para proteger os nossos”. Promete proteger identidades, travar fluxos migratórios, restaurar um ideal de soberania que já não existe. E fá-lo com mestria comunicacional: memes, vídeos, frases curtas, emoção em vez de razão. Num tempo de fadiga democrática, o populismo é mais digerível do que a deliberação.

Mais do que uma alternativa de governo, estas forças representam uma alternativa de regime. Contestam os fundamentos do Estado de direito, relativizam os direitos das minorias, insinuam desconfiança sobre os media, o sistema judicial, os parlamentos. Quando chegam ao poder, como na Hungria de Orbán, não hesitam: capturam o Estado peça a peça. Controlam televisões, reformam constituições, moldam currículos escolares, perseguem juízes, desconstroem tudo o que não controlam. E fazem-no com uma estratégia cuidadosamente desenhada: a da corrosão institucional lenta, silenciosa, eficaz.

É aqui que o problema deixa de ser apenas nacional. Torna-se europeu. Porque a União Europeia, enquanto construção jurídica e política, depende da existência de democracias liberais robustas nos seus Estados-membros. Depende de regras partilhadas, de valores comuns, de confiança mútua. Quando um Estado-membro se torna iliberal, todo o edifício europeu treme. E as reações têm sido tímidas: sanções orçamentais que nunca se concretizam, alertas políticos que caem no vazio, uma Comissão muitas vezes impotente perante a realpolitik do Conselho.

No plano externo, as implicações são ainda mais graves. A Ucrânia, agora símbolo da resistência europeia, corre o risco de se tornar moeda de troca nas mãos de partidos que simpatizam com Putin, ou pelo menos com a sua visão de soberania autoritária. O possível enfraquecimento do apoio europeu à Ucrânia — já perceptível em alguns sectores — não é uma fatalidade, mas um sintoma: o sintoma de que uma certa Europa começa a duvidar de si mesma, do seu papel no mundo, da validade dos seus princípios.

Como resistir, então, a este processo? A resposta não é evidente, mas começa por recusar a ilusão de que bastam cordões sanitários ou indignações morais. É preciso reconstituir uma gramática da política que reconquiste os desiludidos. Reanimar a ideia de contrato social. Voltar a fazer da política uma promessa de futuro, e não apenas uma gestão do presente. Isso implica reformas estruturais, sim, mas também um novo pacto de cidadania. A democracia não se salva apenas com boas intenções — salva-se com trabalho, com coragem, com capacidade de escutar sem medo, de reformar sem complacência. A Europa precisa de uma nova ambição. De um novo pacto político que una os cidadãos em torno de um projecto comum, que não seja apenas tecnocrático, mas também emocional.

E implica também uma batalha cultural. A Europa não pode abdicar da sua história, da sua filosofia, da sua arte, do seu humanismo. Deve reaprender a narrar-se como um espaço de liberdade responsável, de memória activa, de pluralismo e de exigência ética. Thomas Mann, num discurso em Washington em 1945, disse que a missão da Europa era “civilizar o mundo”. Pode soar grandioso, talvez até ingénuo. Mas hoje, o verdadeiro risco é outro: o de nos rendermos à barbárie por excesso de lucidez e falta de esperança.

Por fim, é necessário que os democratas compreendam o tempo em que vivem. A tentação populista não é uma aberração — é uma resposta. Errada, perigosa, mas compreensível. Ignorar a sua raiz é deixá-la crescer. Combater o populismo é também combater o vazio que o gera: o vazio de pertença, de dignidade, de futuro.

Camus escreveu que “o verdadeiro génio da Europa é o da moderação heroica”. Talvez nos falte hoje essa moderação — e, sobretudo, essa heroicidade, que é feita não de grandiloquência, mas de lucidez e responsabilidade perante a História.

Porque, no fim, não se trata apenas de salvar a Europa enquanto instituição administrativa ou construção jurídica. Trata-se de salvar a Europa enquanto ideia: a ideia de uma civilização que recusou a barbárie e escolheu a liberdade com regras, a razão com memória, a diversidade com coesão. E que se compreenda, como advertiu também Camus, que “cada geração, sem dúvida, se sente destinada a refazer o mundo. A minha sabe, todavia, que não o refará. Mas a sua tarefa é talvez maior. Consiste em impedir que o mundo se desfaça.” Essa é, hoje, a exigência que se impõe aos democratas europeus: impedir que o mundo — o nosso mundo — se desfaça sob o peso do medo, da resignação e do cinismo.