A humanidade é complexa. E, por vezes, no mesmo movimento que a perde vem a contradição que a salva. É o caso dos Jogos Olímpicos e dos Jogos Paralímpicos a que assistimos em Paris este verão.
De um lado, a alta competição de quatro em quatro anos e quem diz “alta competição” diz, na verdade, demonstração de poder, superioridade com bandeira nacional no peito, medalheiros a estabelecer a ordem de força das potências. Em Paris, Estados Unidos e China empataram em medalhas de ouro, 40 para cada lado, e com os primeiros a levar a melhor nas de prata e de bronze.
A história dos jogos olímpicos tem sido sempre este braço de ferro de poder entre as grandes potências globais e, por isso, uma arena da geoestratégia. Estados Unidas da América e China agora, sem a presença de atletas a competir em nome da Rússia, que foi banida (com a Bielorrússia) dos Jogos por ter invadido a Ucrânia. Antes do fim da União Soviética, por décadas os jogos olímpicos foram a continuação da guerra fria por outros meios. E ainda antes, nos longínquos jogos de 1936, a Alemanha nazi exibia a sua vontade de poder através do primeiro lugar do medalheiro, com Hitler a assistir no Estádio Olímpico de Berlim.
A alta competição, sobretudo com vista à vitória olímpica, não é bem a mesma coisa que uma competição desportiva. Se não é a obsessão política em fazer desfraldar a bandeira e ouvir o hino para o mundo, com comando quase militar, é a demonstração, que se quer fazer parecer “light”, de uma superioridade, um ter razão na sua existência, na sua identidade histórica, onde, na verdade, contou o “heavy power” económico e os seus enlaces com a infraestrutura, a tecnologia, a ciência aplicada, o progresso, uma certa ideia de sociedade mais desenvolvida. Agregadamente, a União Europeia tem bem mais do dobro das medalhas de ouro dos Estados Unidos ou da China, ou seja, mais do que estas duas potências juntas. Mas, o país mais populoso do Mundo não ganhou sequer um título olímpico. E o país mais populoso de África nem uma medalha sequer. Tudo isto dá que pensar. E há perguntas a fazer. Serão os Jogos Olímpicos uma persistência do poderio “civilizacional” do Ocidente depois da era colonial? Poderão deixar de ser uma ostensão de potências? Como poderiam ser um encontro de comunidades e diversidades sem tanta exibição de poder? Há heróis que vencem apesar de todas as contingências. Mas, basta comparar a evolução histórica dos recordes olímpicos para ver como mais do que dos seus detentores, são as épocas que detêm as marcas. Com poucas excepções, os campeões olímpicos de há décadas seriam os últimos das finais, ou nem isso, de Paris.
Mas, depois há a a força da excepção, como aquele atirador turco, Yusuf Dikeç, que dispensou o aparato tecnológico, para de mão no bolso acertar tão bem no alvo que lhe valeu, com a sua parceira de equipa, uma medalha de prata. E há o desportivismo, que é como uma batota virtuosa que redime nos mais simples gestos todo o significado dos Jogos. Como aquele gesto de He Bingjiao, atleta chinesa de badminton, que no pódio olímpico, bandeiras desfraldadas, fez questão de mostrar para as câmaras um pin de Espanha, homenageando a adversária espanhola que fora forçada a desistir por lesão grave quando as duas disputavam a meia final. Ou a poderosíssima inocência de uma selfie tirada em conjunto por tenistas de mesa coreanos, sem a rede a separar as duas Coreias como os dois lados de uma mesa de pingue-pongue. E a força com que se podem abalar preconceitos atravessa outras fronteiras, como a dos estereótipos sobre a diferença de género na polémica bem vencida sobre o direito da pugilista Imane Khelif em competir como mulher. A história dos Olímpicos que vale a pena guardar não é tanto a do que se previa, mas a do que corra de outra maneira do previsto.
Este domingo, os Jogos Paralímpicos tiveram a sua cerimónia de encerramento no Stade de France. Mais do que os Jogos Olímpicos foram estes Paralímpicos que Paris soube fazer prevalecer como um grande acontecimento desportivo. De facto, os paralímpicos deixaram, em Paris, de ser um evento simbólico, à sombra dos Olímpicos. Porque ganharam escala, com uma visibilidade e uma participação que se sustentam por si. E com um regime de interesse próprio, mais a competição como oportunidade de diversidade, inclusão e compreensão do que o contrário. Um outro desenvolvimento, apostado no envolvimento. E, em linha com tudo isto, a história de resultados do Paralímpicos foi divergindo da dos Jogos Olímpicos, um medalheiro com menos hegemonia norte-americana, África e Índia a aparecerem um pouco melhor, o Brasil a revelar-se uma grande potência, o Sul ainda muito atrás do Norte global, mas com menos desproporção.
A grande reflexão que cabia fazer-se a propósito dos Olímpicos é como um dia poderão ser, com os Paralímpicos, os mesmos Jogos, com todos os corpos, géneros e compleições, ligadas pelo amor a uma modalidade e à alegria da realização por ela.