Na mesma medida em que a globalização veio para ficar, também a temática dos preços de transferência constitui um ponto fulcral na organização de qualquer grupo económico com presença internacional. É uma matéria fiscal extremamente sensível, atendendo ao seu impacto na tributação das empresas multinacionais.

A relevância do tema ficou bem patente no Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), da OCDE, cujos três pilares consistem (i) na procura de maior coerência das regras fiscais a nível internacional, (ii) no combate à erosão e evasão fiscais e (iii) na criação de um ambiente fiscal internacional mais transparente. A área dos preços de transferência foi considerada transversal a todos estes pilares e ganhou um novo fôlego e importância, especialmente no momento da emergência do conceito de “criação de valor” (value creation).

Desde logo, com o mote dado pelas ações 8 a 10 do referido Projeto BEPS, cujo objetivo é alinhar os resultados de preços de transferência à criação de valor. Em outras áreas, são várias as referências à necessidade de identificar atividades económicas que criem valor, para delas extrair consequências tributárias, como são exemplo a prevenção da utilização abusiva de convenções de dupla tributação ou a definição e atribuição de lucros a estabelecimentos estáveis (ações 6 e 7 do Projeto BEPS).

Mas, afinal, o que significa “criação de valor” neste contexto? É um sinónimo ou equivalente aos conceitos de substância económica, rendimento, lucro ou aos clássicos fatores de produção? Existe um valor mínimo pré-definido?

Perguntas que, como muitas outras, só podem ser respondidas através de uma compreensão holística da cadeia de valor do negócio. E é aqui que entra em campo a “ciência” dos preços de transferência, que integra a análise funcional como abordagem metodológica dirigida à identificação das atividades economicamente significativas, das responsabilidades assumidas, dos ativos utilizados ou contribuídos e dos riscos assumidos pelos intervenientes na cadeia de valor.

A análise deve centrar-se no que as partes efetivamente fazem e no valor que aportam, afigurando-se de extrema relevância entender como é que o valor é gerado no seio de um Grupo, identificando cada um dos seus contribuidores. No fundo, o Projeto BEPS pretende prevenir retornos inapropriados de riscos e ativos erroneamente alocados, podendo conduzir inclusivamente ao não-reconhecimento de transações sem racional económico.

Uma análise estruturada centrada no “valor” não é um exercício fácil, tornando-se tão mais complexo quanto maior for o entrosamento entre funções, riscos e ativos. A acrescentar a tal dificuldade, uma especial referência para o tema dos ativos intangíveis, com ênfase para a distinção entre posse/detenção legal vs. posse/detenção económica e para os hard-to-value intangibles (“HTVI”). De facto, nos modernos negócios digitais, sobre os quais não se formou ainda consenso quanto à origem da “criação de valor”, uma análise de preços de transferência focada nestes aspetos é fundamental.

Em suma, se a elaboração de uma análise funcional em sede de preços de transferência não constitui uma novidade, a necessidade de a alinhar com o novo conceito de “criação de valor” obrigará, necessariamente, ao redesign ou refocus de determinadas operações entre entidades relacionadas.

Esta “revolução em curso” no domínio dos preços de transferência, em conjunto com o reforço dos mecanismos de troca de informações sobre Acordos Prévios de Preços de Transferência, Informações Vinculativas e Relatos de Preços de Transferência (v.g. o Country-by-Country report), representa um desafio acrescido de adaptação para as empresas multinacionais. Quem dirá agora que a área de preços de transferência não cria valor?

 

Ao longo de dez artigos, o departamento fiscal da Garrigues aborda os principais desafios relacionados com o novo contexto da fiscalidade internacional. Trata-se de uma oportunidade para os leitores compreenderem melhor o contexto de uma fiscalidade cada vez mais transparente, mas também mais complexa e com custos de cumprimento elevados. Próximo Artigo – Nova Diretiva (ou direção) contra práticas de elisão fiscal.