No passado sábado, dia 24 de Fevereiro, teve lugar em Lisboa, uma manifestação talvez inédita, promovida pelo movimento “Vida Justa”, que nasceu nos bairros periféricos da capital, com base em redes de solidariedade que se geraram no contexto da pandemia. Terão estado presentes cerca de 10 mil pessoas, sendo razoável considerá-la como semente de outras, maiores e mais audíveis.

Esta ponta do icebergue terá emergido por duas questões estruturais e uma conjuntural. A primeira razão estrutural será a orfandade política desta população. Nem a esquerda nem a direita têm assumido as causas dos mais desfavorecidos, que não se sentem representados por nenhum dos partidos e organizaram-se por si próprios.

A esquerda portuguesa há muito que deixou de se preocupar com os mais desfavorecidos. Em vez disso, passou a focar-se nos trabalhadores do sector público e em propósitos – caríssimos – que são esotéricos para os mais pobres, como estar na vanguarda ambiental da UE, enquanto caminha para a retaguarda económica.

Por seu turno, a direita precisa de se recordar da centralidade da dignidade da vida humana na(s) sua(s) ideologia(s) e que há largos segmentos da população (reformados, incapacitados, minorias, etc.) que não estão em condições de beneficiar directamente da liberdade económica e que não podem ficar uma eternidade à espera de receber os benefícios indirectos da prosperidade que aquela liberdade é suposto trazer.

A segunda raiz estrutural reside na estagnação económica, desde 2000. Este marasmo tem conduzido a uma estagnação dos salários antes de impostos. Com a falta de crescimento económico, os sucessivos governos têm recorrido a subidas consecutivas de impostos, bastando recordar que em 2002 a taxa normal de IVA era de 17% e agora é de 23%. Com a subida de impostos, os salários depois de impostos estão em queda há mais de vinte anos.

Finalmente, a conjuntura de guerra trouxe uma brutal subida da inflação, como não se via há mais de 30 anos, com impacto sobre os preços da energia e dos produtos alimentares, sacrificando especialmente os mais pobres. Estes partiam de uma posição muito fragilizada e não estão a conseguir aguentar este esforço adicional que lhes está a ser pedido. A ajuda do Governo foi muito mal desenhada, deu o mesmo quer a quem tem rendimentos mínimos quer a quem ganha mais do dobro do salário médio.

Os partidos precisam de acordar para estes “órfãos”, sobretudo os mais moderados, se não querem ver estes cidadãos, largamente abstencionistas, a engrossar as fileiras dos mais extremistas. Por seu turno, o Governo tem que renovar os apoios aos mais pobres, desta vez mais focados em quem realmente está em piores condições.

Finalmente, há aqui um incontornável paralelismo com o sentimento de orfandade sindical, que gerou a criação do novo sindicato dos professores, o STOP.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.