Como gato escaldado de água fria tem medo, e todos estamos cansados de declarações de tranquilidade na véspera de crises bancárias, só podemos assistir com inquietação ao provável avanço desta operação, em especial tendo em conta o facto de ser a Santa Casa da Misericórdia a protagonizá-la.

A Santa Casa é uma instituição com passado, uma história e um acervo daquilo que é a ideia de mutualismo, desde que foi constituída por parte da Rainha Dona Leonor. Por várias razões, a sua entrada no capital social do Montepio, nos termos em que está a ser configurada, contradiz essa ideia de mutualismo:

1. Prejuízos de mil milhões. Sob a liderança de Tomás Correia, entre 2010 e 2015 o grupo Mutualista apresentou perdas consolidadas no valor de 1.000 milhões de euros. Este impressionante currículo conduziu ao seu afastamento do Montepio por pressão do Banco de Portugal, tendo, no entanto, conseguido manter-se à frente da Associação Mutualista.

2. Falta de idoneidade da anterior administração. Não há apenas problemas de má gestão a apontar-lhe. Como presidente da Associação Mutualista, Tomás Correia é arguido em dois processos-crime, ambos relativos a negócios imobiliários.

No primeiro, é suspeito de ter recebido 1.5 milhões de euros do construtor José Guilherme, o mesmo que ofereceu a famosa “liberalidade” de 14 milhões de euros a Ricardo Salgado. No segundo, na companhia de mais 14 arguidos, entre os quais o presidente da Martifer, Carlos Martins, e o ex-Presidente do Finibanco, Humberto Costa Leite, há suspeitas de burla qualificada e insolvência dolosa, relacionada com negócios de terrenos em Coimbra. Tomás Correia, embora não seja uma figura tão mediática como Ricardo Salgado, teria razões para poder ser apelidado de o “dono de todo o Montepio”.

3. Deterioração da situação financeira. Nas contas de 2016 da Mutualista, a participação no Montepio está avaliada em mais de 2.000 milhões de euros, valor que resulta da soma do capital social de 1.770 mil milhões de euros com 240 milhões de euros de unidades de participação (UP´s).

No entanto, este valor encontra-se sobrevalorizado. Numa instituição de crédito não cotada, o seu valor é normalmente calculado com base no price-to-book, preço implícito numa hipotética transação face ao valor dos capitais próprios. Mas utilizando os múltiplos da banca ibérica, acrescido de um prémio de controlo, o Montepio não vale mais de 1.500 milhões de euros, valor muito abaixo do registado no balanço da Associação Mutualista, o qual, a ser relevado, iria agravar a situação patrimonial desta última instituição.

4. Comportamentos condenáveis da atual administração. A atual administração do Montepio, liderada por José Félix Morgado, tentou em 2016 montar uma operação financeira, envolvendo uma participação que detinha numa empresa de minas, I´m Mining, que lhe permitiria de uma forma criativa impulsionar os resultados e obter uma mais-valia de 24 milhões de euros, apresentando desta forma um lucro líquido de 144 mil euros no terceiro trimestre desse ano. Este negócio só foi travado pelo Conselho Geral de Supervisão desta Caixa Económica após o alerta da auditora KPMG.

Esta operação de “maquilhagem” foi severamente criticada, e sem prejuízo da responsabilidade criminal ou contraordenacional que possa ser imputada aos seus protagonistas, depois de tudo o que se tem passado e atendendo à situação atual do Montepio, deveria levar o Banco de Portugal a equacionar a retirada da idoneidade a José Félix Morgado.

5. A OPA sobre o Finibanco. Em 2010, o Montepio lançou uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre o Finibanco, no valor de 340 milhões de euros, quando este Banco estava avaliado em 240 milhões de euros. Qual a razão para esta súbita valorização? Quem beneficiou com os 100 milhões de euros adicionalmente pagos? É curioso verificar que quer o Presidente Tomás Correia, quer o ex-Presidente do Finibanco, Eng.º Humberto Costa Leite, são ambos arguidos num mesmo processo, o que aponta para a existência de relações de proximidade entre ambos, gerando-se assim a sensação de que alguém poderá ter beneficiado com esta operação, que não certamente os associados da Mutualista e a ”economia social”.

6. Ausência de transparência na colocação de produtos financeiros pela Associação Mutualista. Se se fizer um inquérito aos sócios da Associação Mutualista sobre os produtos que detêm associados a este grupo, é fácil de constatar que muitos não saberão distinguir entre um depósito no Montepio, e um produto de capitalização emitido pela Associação Mutualista, ambos vendidos nos balcões do Montepio. A diferença devia ser clara e facilmente percecionável, já que os produtos de capitalização, contrariamente aos depósitos do Montepio, não beneficiam de qualquer sistema de garantia ou indemnização, para além dos ativos da própria Associação Mutualista.

7. Falta de posição assumida por parte do Governo. O silêncio e a passividade por parte do Ministro do Trabalho e Segurança Social relativamente à Associação Mutualista chegam a ser inquietantes. O Sr. Ministro Vieira da Silva pode e deve intervir, sendo uma obrigação inerente ao seu cargo defender os direitos dos associados mutualistas, podendo em casos de suspeitas de irregularidades e desequilíbrios financeiros, pedir a destituição judicial da Direção. Nada disso aconteceu até ao momento.

Não é demais sublinhar que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – uma pessoa coletiva de direito privado, e de utilidade pública administrativa – em homenagem à sua história, e de acordo com o seu objeto estatutário, tem como finalidade favorecer as pessoas com mais dificuldades, construir estruturas sociais para apoiar os grupos mais vulneráveis, do ponto de vista etário, relacional e económico, o que não se compagina com a entrada no capital social de uma instituição de crédito, sobretudo com as caraterísticas e passado recente do Montepio.

Apesar da bondade da iniciativa e do espírito peregrino do Presidente da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, este negócio é uma perversão dos objetivos estatutários desta Instituição, ainda que sob uma capa falaciosa de “economia social”; o poeta José Régio no livro Deus e o Diabo teria talvez um bom conselho a dar sobre o caminho ideal a seguir: Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí.