Há dias, dei conta de que ainda se publica o “Neues Deutschland”, que foi o mais importante jornal da antiga República Democrática Alemã, lido ainda hoje por quantos nunca se reconciliaram com os efeitos da reunificação. Aquele diário, recorde-se, tem como coroa de “glória” jornalística ter feito uma edição, no dia seguinte à “queda” do muro, sem a menor referência ao assunto!

Lembrei-me então do conceito de “östalgie”, uma trouvaille vocabular para simbolizar o sentimento de nostalgia que atravessa alguns setores, saudosos dos tempos da Alemanha de Leste. E que, ao que parece, não são tão poucos como isso. O filme “Adeus, Lenine!”, que vivamente recomendo, é um magnífico exemplo desse sentimento. Também não é segredo para ninguém que um dos suportes do poder de Vladimir Putin é a “saudade” da União Soviética.

Em Vila Real, em casa do meu avô materno, existiu por muito tempo aquilo a que chamávamos a “garrafa do muro”. A divisão forçada de Berlim, em 1961, tinha sido muito marcante, um pouco por todo o mundo, e seguramente também na minha família. Desde essa altura, havia por lá uma garrafa de vinho alemão, oferta de um familiar, que, ao que sempre ouvi, apenas seria aberta quando o muro de Berlim desaparecesse. Verdade seja que, à época, nunca se suspeitou que ele viesse a durar cerca de quatro décadas.

O meu avô morreu poucos anos depois, o muro continuou de pé e a garrafa andou, desde então, em bolandas, tendo ido finalmente parar a casa dos meus pais. Tenho perfeita noção de que, em 1979, quando atravessei pela primeira vez o “checkpoint Charlie”, para ir a Berlim Leste, me lembrei daquela garrafa de rótulo amarelado.

O muro caiu, faz agora 30 anos. Tenho bem viva uma conversa telefónica com o meu pai, naquele mesmo dia. Não me pareceu excessivamente feliz com a unificação alemã, não porque tivesse a menor simpatia pelo regime comunista de Leste, mas porque, como “aliadófilo” ferrenho que havia sido e eterno desconfiado da bondade do poder que a Alemanha continuava a ser, ecoava, por vezes, o dito atribuído a François Mauriac: “Gosto tanto da Alemanha que até prefiro ter duas…”

Tenho a certeza de que, brincadeira à parte, lá no fundo, ele se congratulava com o fim da Guerra Fria e a futura reconciliação germânica, embora, nos seus últimos anos, o visse sem a menor simpatia pela senhora Merkel. Se ele pudesse adivinhar que, nos dias de hoje, o filho já começa a ter saudades dela…

No Natal desse ano de 1989, fomos à procura da garrafa. Era, afinal, um riesling, um vinho branco alemão facilmente perecível, que só o otimismo histórico do meu avô havia considerado poder manter-se degustável. Estava, como era óbvio, uma imbebível zurrapa.

Dou-me frequentemente conta de que, tal como acontecerá na “östalgie”, tendemos a guardar na memória apenas o melhor do passado. Há talvez uma boa razão para isso: é que, no passado, a quase todos nós, o futuro que aí vinha parecia ir ser bem melhor.