Não, os deputados não vão poder aceitar de novo viagens lúdicas ou suspeitas. Há aqui um erro de interpretação, o que é natural, porque as redes sociais se inflamam facilmente e a própria comunicação social, até a ‘de confiança’, começa ser tocada pela doença do populismo. A ‘verdade’ é outra, já foi proclamada por PS, PCP e PSD e parece o refrão de uma cantiga da moda: antes não havia regras, agora irá haver. Assim é que está certo. E, portanto, os deputados viajavam ‘porque sim’, depois desta enorme mudança só irão viajar ‘se talvez’ – ou seja, apenas se quiserem. Obviamente, faz toda a diferença.

Para que não haja dúvidas, cito o inspirado redator: “não está sujeita a dever de registo a aceitação de ofertas, de transporte ou alojamento que ocorra no contexto das relações pessoais ou familiares” e outras que permitam aceitar quaisquer convites compatíveis com a “relevância de representação própria do cargo” ou “cuja aceitação corresponde a acto de cortesia ou urbanidade institucional”.

Digam-me lá quem, com este precioso embrião de jóia legislativa, poderá desconfiar das justas intenções de um qualquer deputado que decida ir assistir a uma manifestação desportiva em Budapeste, ver como funciona a bolsa de Banguecoque, registar como se produz a caipirinha no Rio de Janeiro, perceber a lógica de uma unidade agrícola em Bogotá ou entregar-se a outras investigações importantíssimas para  poder, em boa consciência, estar mais apto para desempenhar as suas funções ou, pelo menos, ser um deputado “urbano”? Pois é isso mesmo: ninguém! Para o confirmar só teremos de deixar passar o devido tempo, pois é natural que nos primeiros meses possa haver algum acanhamento, se bem que não generalizado.

Depois do que aconteceu aos ex-deputados do PSD Luís Montenegro, Hugo Soares e  Luís Campos Ferreira, que tiveram de invocar piedosas razões para saírem à pressa do Parlamento, será sempre preciso algum cuidado, uma certa desconfiança inicial. Nunca se esqueça que, nesse tão pouco falado caso, deixado à sombra pelo chamado ‘Galpgate’, estará a ser investigado se, para justificarem as viagens realizadas em 2016 ao Europeu de futebol em França, a convite da agência Cosmos, não terão sido emitidos cheques (por eles) e facturas (pela amável empresa) em datas muito posteriores – um cenário em que se cruzariam ilegalidades várias. Há coisas pouco faladas mas que existem e que seria ‘oportuno’ arquivar.

Não tenho dúvidas que, apesar de já ter identificado um ou outro deputado incomodado com o processo, ele será sufragado no plenário do Parlamento, no qual ninguém parece defender a visão que acabaria com a vergonha: viagens sem pagar só a convite de entidades públicas. As exceções sairiam do orçamento (se justificadas) ou dos bolsos dos deputados. As prendas de valor significativo seriam vendidas a favor de instituições de solidariedade social ou iriam para um anexo no museu da Presidência da República.

A missão de um deputado não deveria poder ser maculada pelo cerco dos interesses – e não pensem os ingénuos que a quota do futebol tem aqui qualquer relevância. Nada disso! Os interesses importantes, e não tão escrutinados, são outros, no âmbito da mobilidade, da energia, da construção, dos negócios. Mas, pronto, está confirmado: em São Bento vive-se numa bolha sem contacto com o exterior. E aposta-se sempre na memória curta dos cidadãos. Que este caso das viagens&prendas aconteça precisamente em Abril só nos dá a dimensão do descaro.