O trabalho temporário pode ser uma opção positiva, permitindo ajustar as preferências pessoais dos trabalhadores às necessidades pontuais dos empregadores. Pode ser assim, mas na verdade é raro que tal aconteça. Ainda que o espírito desta solução possa ter sido positivo na sua concepção, oferecendo às empresas alguma flexibilidade na gestão da sua mão de obra, importa dizer que, do ponto de vista dos trabalhadores, se libertos de condicionalismos na escolha, se trata de uma opção com expressão residual.
Na sua origem, o trabalho temporário era uma forma de trabalho por projecto, ou por tarefa de complexidade elevada, típica de profissões intelectuais e artísticas. Porém, esta prática foi alastrando, apesar de a grande maioria dos trabalhadores temporários preferir e desejar outro tipo de vínculo de trabalho.
Esta forma de trabalho precário começou por se estender às profissões relacionadas com as tecnologias de informação e comunicação, depois disseminou-se entre as profissões administrativas, e mais recentemente começou a proliferar entre as funções técnicas, de moderada ou elevada complexidade.
O abuso reiterado de recurso ao trabalho temporário, agora vulgarmente denominado pelo uso do anglicismo outsourcing, é uma das chagas sociais do nosso tempo, cuja perigosidade tem vindo a aumentar e que passo a explicar.
Hoje em dia, inúmeras empresas recorrem a fornecedores de trabalho temporário, ou outsourcing, para preencherem posições permanentes, numa absoluta negação do espírito que presidiu à criação do trabalho temporário. Temporário quer dizer, em posições não permanentes ou meramente em substituição, com prazo limitado, de trabalhadores permanentes ausentes. É isto que diz o artigo 175 e seguintes do Código do Trabalho. A figura legal destinava-se a prever acréscimos sazonais, ou não antecipáveis, de trabalho, projectos muito específicos, ou vacaturas de vagas permanentes enquanto decorriam processos de recrutamento, e pouco mais.
Mas quando empresas de grande dimensão, fazendo pouco caso do espírito e da letra da lei, recorrem a empresas de trabalho temporário como forma de terem uma força de trabalho mais barata, pouco sindicalizada, e facilmente descartável, então temos seguramente vários problemas sérios à nossa frente.
O primeiro é a ausência de espírito de cidadania e de responsabilidade social das inúmeras empresas que recorrem a este expediente com laivos de semi-esclavagismo. O segundo é a falta de eficácia da actuação da Autoridade para as Condições do Trabalho, quer pela ausência de fiscalizações preventivas, quer por coimas ridiculamente baixas. O terceiro é a erosão da classe média e do sonho de que qualquer cidadão, mediante esforço e estudo, pode ascender no elevador social. A lista, infelizmente, poderia continuar não fossem as limitações de espaço.
De facto, o preenchimento de posições permanentes por trabalhadores que são falsos temporários, que saltitam de cliente em cliente, engajados por empresas deste tipo de recrutamento, alguns deles há duas décadas como autênticos permanentes de empresas de trabalho temporário, traduz-se num muito baixo ou nulo investimento na qualificação desses trabalhadores, e na degradação das condições de trabalho, por vezes coexistindo num mesmo espaço, anos a fio, trabalhadores do quadro e trabalhadores temporários, lado a lado.
Sejamos muito explícitos. Quando algumas empresas invocam a necessidade de uma alegada restruturação, reduzem os seus trabalhadores efectivos e, poucos dias depois, os substituem por uma vaga, em números idênticos, de trabalhadores temporários a ganharem metade, ou um terço, dos anteriores, meu caro leitor, creio que chegou a hora de nos indignarmos muito a sério.
Quando funções permanentes são subcontratadas a empresas externas, que mais não fazem do que oferecer o mesmo trabalho em condições de remuneração que nos colocam num patamar digno de Terceiro Mundo, meus caros amigos, julgo que é tempo de dizer basta!
Usado desta forma despudorada, tal como está a acontecer em cada vez maior número, o alegado trabalho temporário e o outsourcing são indignos, geradores de uma classe qualificada remetida a uma condição ‘operária’. É isto que explica em larga medida a vaga emigratória qualificada a que assistimos desde o início deste século. Quando gerações inteiras de licenciados só encontram emprego temporário falso, a pagar pouco mais que o salário mínimo, lamento dizer, mas colectivamente falhámos com estrondo.
Chegou a hora de questionar os nossos líderes políticos sobre que tipo de sociedade e modelo social perfilham. Chegou o momento de nos questionarmos a nós próprios se vamos ficar, paciente e eternamente, a assistir à destruição do tecido social, à proliferação dos filhos adultos mas para sempre dependentes dos pais e avós, num processo de destruição maciça de sonhos e de rendimentos dos trabalhadores, a favor de ganância de um punhado de empresas e dos seus accionistas.
Pessoalmente, não é isto que quero para os meus filhos ou para o meu país. Quero uma outra sociedade e estou disponível para, civicamente, lutar por ela. Recuso-me a aceitar, como cidadão e dirigente sindical, a normalização do recurso crescente a um subterfúgio que é uma autêntica bomba de destruição social.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.