Não há contexto que justifique a violência do Hammas. Não é só terrorismo, mas aquela espécie de terrorismo que ambiciona a maior e indiscriminada violência possível sobre cidadãos civis. Tem muito sentido, para a consciência do cidadão israelita, a comparação com o 11 de setembro. Mas não é verdade que, em face do sucedido, não haja outra atitude senão apoiar Israel. Não devemos ser cúmplices de um automatismo da reparação imediata, de justiça a quente, livre para vingar sem nada ver.
De novo, tem cabimento mencionar o 9/11, pela reacção imediata que se lhe seguiu de levar a guerra ao Afeganistão para destruir o regime talibã. O resultado foi um desastre em todos os planos.
Entre o terrorismo do Hammas e a violência de retaliação de Israel, nada permite uma escolha. Na verdade, o que urge fazer é não escolher. É difícil porque o primeiro reflexo moral é o de escolher, deixar a empatia fazer as suas escolhas. Conduzir-se pela comoção e dessa maneira dizer presente – “compareço!”. Mas isso é apenas uma moral do acto reflexo, que age sem pensar o que a responsabilidade exige.
O juízo ético faz-se mais de resistência da consciência do que da adesão que leva tudo à frente. Precisamos da empatia, mas a própria empatia precisa do intervalo da consciência, a distância crítica que suporta a dor em vez de se deixar levar por ela.
Não há contexto que torne moralmente aceitável dizer que o regime de apartheid é o único culpado, ou que a violência indiscriminada do Hammas é o único mal a enfrentar. Ainda assim, há contexto. O pensamento não pode ficar suspenso.
Num texto acabado de publicar na “London Review of Books”, Judith Butler faz essa observação: “O facto de alguns pensarem que a contextualização da violência odiosa desvia a atenção da violência ou, pior ainda, a racionaliza, não significa que devamos capitular perante a afirmação de que todas as formas de contextualização são moralmente relativizadoras dessa forma.”
Há um dever de continuar a pensar, de contextualizar, não para legitimar ou relativizar, mas para que não se suspenda, no estampido da violência, o reconhecimento de uma realidade de subjugação de um povo, sujeitado a um regime de ocupação e de apartheid sem que haja um reacção proporcional e exigente do mundo, da dita comunidade internacional, dos seus organismos e poderes.
Na guerra da Ucrânia, a Europa indignou-se e mobilizou-se na defesa da soberania de um país invadido. Por que razão não é capaz da mesma escolha a respeito da Palestina, agora ou antes? Apesar do terror de Estado, a ameaça de um cerco a Gaza como a dos nazis a Leninegrado, a Europa escolhe sobretudo apoiar Israel.
O que falha? É a moral do acto-reflexo, a escolher empaticamente o lado da primeira vítima, a preterir as vítimas da retaliação? Não só. É a reiteração de escolhas já feitas, superlativamente escolhidas ao longo da história, como se o choque deste último terramoto de violência, confirmasse, sem espaço para inquietação, escolhas, que incluem a morte de outros: tempo de agir, tempo de guerra, tempo de destruição. Como se não tivesse sido sempre essa a escolha desde pelo menos a luta dos cruzados pela conquista da terra santa, atravessando os séculos até os dias de hoje.
O conflito israelo-palestiniano é uma espécie de sinédoque de um conflito quase mundial que arrastamos há séculos e de que somos parte através das nossas próprias histórias do Velho Mundo dos três monoteísmos. Este conflito não é uma guerra local, mas teatro de uma guerra que nos envolve a todos, não no sentido de uma guerra mundial, mas de uma guerra da história, da representação da própria história.
A mudança de perspectiva de que precisamos é que essa história de violência não é toda a história, mas aquela que se conta por eliminação das outras. Temos de nos desinscrever das escolhas do passado e ressignificar outras histórias, e nutri-las. Uma visita ao Alhambra ajuda. Ler Amin Maalouf a contar sobre as cruzadas pela perspectiva dos árabes também. Não por acaso o fundamentalismo obceca-se em apagar os rastos da história cultural dos lugares por onde passa. E a nossa história ocidental não é parca em apagamentos destes.
Choremos os palestinianos mortos e os israelitas mortos. É não sermos desumanos. Mas, a seguir, para sermos humanos, temos de nos questionar o que trazemos de escolhas feitas e das suas consequências. Os mesmos cruzados que foram a Jerusalém ajudaram a tomar Lisboa. A tomada de partido é uma premissa viciada de representações sobre a história do Ocidente e sua civilização.
O estado de Israel foi criado por uma Europa que se viu diante da experiência do holocausto. Mas fê-lo agindo colonialmente, decidindo que um território havia de ser Israel, que por seu turno lida colonialmente com o povo palestiniano. Tudo exclusões. A comparência moral que urge é saber tornar presente o contexto todo, até o que nos inclui. Sermos todos parte do problema é parte da sua resolução.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.