O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 8 de Abril de 2021, decidiu que a pandemia por Covid-19 constitui um motivo para a resolução, válida e legítima, de um contrato de arrendamento comercial, com fundamento na alteração anormal e superveniente das circunstâncias.

Esta decisão assume um relevo particular, por três razões essenciais: primeiro, considera vários preceitos legais (quer comuns, quer extraordinários, porque aprovados em “contexto pandémico”); segundo, ensaia uma construção adaptada ao momento actual, com base, designadamente, na dicotomia “situações normais e regulares” e “situações excepcionais”, e na ideia central de “equilíbrio contratual”; terceiro, autoriza a resolução extrajudicial do contrato por alteração das circunstâncias.

A pandemia por Covid-19 constitui um evento que interferiu no cumprimento da generalidade dos contratos, em particular, os duradouros e de execução diferida no tempo. Em Março de 2020, impôs-se aos contraentes como um facto exterior, imprevisível, inimputável e inevitável. O juízo quanto à exigibilidade das prestações a que cada contraente se vinculou tem hoje de ser feito em termos distintos do que sucederia num cenário “Covid-free”.

A rigidez do postulado da estabilidade dos contratos deve ser matizada em situações como as que se têm vivido desde Março de 2020. A conduta de cada um dos contraentes passa a ser sindicada à luz de padrões de probidade, lisura e lealdade qualificados. Em especial, os contraentes “profissionais” (como sucede nos contratos “B2B”) devem actuar com transparência e com verdade, e colaborar reciprocamente, com respeito integral pelas exigências de fair dealing.

Por outro lado, a pandemia tem determinado consequências distintas nos vários momentos temporais e em função dos diferentes vínculos estabelecidos: nesta matéria, “one size does not fit all”. Na verdade, uma das lições do “novo normal” é a necessidade de se privilegiar um exame casuístico, que releve as circunstâncias concretamente relevantes, como, v.g., o tipo de contrato, a sua duração, a função correspondente, a natureza das relações entre os contraentes, e a particular ingerência em cada prestação contratualizada.

Em termos complementares, a pandemia não justifica, sem mais, a recusa de realização de toda e qualquer prestação a que o contraente se vinculou. O juízo a privilegiar tem, antes, de ser contextualizado e esclarecer: (i) que prestação ficou comprometida; (ii) qual a duração estimada do impedimento; (iii) que medidas podem ser adoptadas para mitigar os prejuízos causados à contraparte.

O Tribunal da Relação, na decisão referida, apreciou um contrato de arrendamento comercial de uma loja de artigos de viagem destinados, fundamentalmente, a um perfil de clientes turistas. Foi alegada e demonstrada, pelo arrendatário, a existência de uma assimetria significativa entre as prestações a realizar em cumprimento do contrato (evidenciada pela desproporção assinalável entre o valor das vendas realizadas e os custos implicados pela manutenção da actividade). Este diagnóstico conduziu o tribunal a reconhecer ao arrendatário lesado um fundamento material para promover a cessação antecipada do contrato.

O contraente que prove o preenchimento dos requisitos de verificação cumulativa do instituto da alteração das circunstâncias, tem, pois, o direito a promover o seu “exit”, resolvendo o contrato. E assim sucede pelo facto de ser inexigível, por motivos objectivos, a manutenção do vínculo contratual, nas condições originariamente estipuladas. Cabe, depois, ao tribunal, no pressuposto de a contraparte contestar a resolução, apreciar a sua licitude, isto é, a existência de um fundamento material válido.

A resolução por alteração das circunstâncias oferece-se, assim, como um “instrumento bélico”, a actuar no litígio entre as partes, e que será dirimido por uma entidade heterónoma, com competência para conformar os termos do regulamento contratual, e, inclusivamente, para decidir sobre a sua vigência (no quadro da alternativa entre modificar ou resolver o contrato). É, por isso, fundamental que os tribunais avaliem, com ponderação, os meios de tutela jurídica concretamente mais adequados na situação individual.

Os novos tempos trazem, seguramente, desafios renovados para o julgador, que será instado a materializar, em cada decisão, a virtude cardeal da prudência.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.