1. Há muito tempo que a “Operação Marquês” deixou de ser o “caso Sócrates” para se constituir naquilo que é verdadeiramente: o processo de uma época. Está para a relação política-mundo financeiro como o processo da Casa Pia esteve para os costumes. É por isso, entre outras razões, que não perco tempo excessivo a acompanhar os esforços individuais do ex-primeiro-ministro, já numa dimensão trágico-cómica, para aproximar a sua realidade daquela que serviu de pano de fundo a um outro livro que ele nunca poderia escrever nem sequer encomendar: “O Processo”, de Franz Kafka.

Alguém lhe deveria dizer, aliás, que Joseph K. é produto do talento do seu autor-criador e que ele, José Sócrates, é apenas uma alegoria de feira com que o País expia os seus pecados. Estes (os pecados) são muitos e têm nomes próprios bem mais importantes do que o antigo líder de quem o PS agora se envergonha e afasta.

2. Também não me centro em Ivo Rosa nem na candura que ele demonstra ao considerar credíveis os depoimentos de pessoas que foram, objetivamente, amanuenses de Sócrates, como Armando Vara, Mário Lino, Carlos Santos Ferreira e Paulo Campos, entre outros. Melhores dias virão, certamente, para a procura da verdade factual neste caso.

Aquilo que me interessa relevar no funcionamento da sociedade portuguesa é a conivência legislativa com tudo aquilo que se está a passar. Os deputados, pela inação, são hoje parte do problema e responsáveis pelo clima de promiscuidade que atravessa os grupos parlamentares e não permite coisas tão simples como aquelas que António José Seguro, enquanto secretário-geral do PS, propunha há dez anos:

– Considerar como crime declarações falsas ou ausência de declarações sobre rendimentos e património dos políticos e de altos cargos públicos;

– Congelar a favor do Estado os rendimentos e património sem justificação e avançar com investigação criminal pelo MP.

Como sabemos, nada foi feito. Nem nas áreas citadas (e vejam como elas se aplicariam na Operação Marquês…) nem em muitas outras. A corrupção continua a roubar a economia nacional, a minar o regime e a abrir espaço ao populismo.

3. Um Plano Nacional de Combate à Corrupção, no qual ninguém parece ter muita esperança, irá brevemente começar a ser debatido, com certeza sem pressa, na Assembleia da República. Esses trabalhos serão, como sempre, seguidos de perto pela competência dos grandes escritórios de advogados, muito mais apetrechados para preverem o futuro, e o acautelarem, do que a maioria dos voluntariosos deputados que sobram da fatia que fecha os olhos e colabora no festim do regime.

Não tenhamos dúvidas: mantendo o essencial da Lei, não combatendo o enriquecimento ilícito, enfraquecendo os meios da investigação, continuando a confundir Estado com o partido de turno, os processos suceder-se-ão.

Salgado, Granadeiro, Bava e Sócrates serão substituídos por outros nomes, que já devem estar em gestação, e daqui a outra década teremos folhetins idênticos, estaremos a ser confrontados com a aplicação do dinheiro europeu e abrir a boca de espanto com a desfaçatez de como tudo se combina a céu aberto.