A propósito de um pensamento de Sartre  

Em 1960, Jean-Paul Sartre publicava “A Crítica da Razão Dialéctica”, uma obra monumental à qual não seria feita inteira justiça no seu tempo. Os anos 60 já não se reviam no humanismo do existencialismo dos anos 40. O humanismo — a ideia de uma história comandada por escolhas de sujeitos humanos, a própria ideia de um sujeito humano, tudo aquilo que na verdade Sartre tentava incorporar num marxismo reinante demasiado abstracto do seu ponto de vista — tornou-se o alvo preciso de crítica e desmontagem. Era já o tempo de Lévi-Strauss, Michel Foucault, do estruturalismo, enfim, da transição da modernidade para a pós-modernidade e Sartre era apanhado na curva da história do pensamento.

Agora, mais de meio século depois, sente-se muito a falta daquele sujeito humano, individual ou colectivo, de que falava Sartre, que tinha nas mãos o desafio de traçar o seu próprio futuro como uma história da liberdade. Há uma nostalgia da liberdade de Sartre e não porque estivesse errada a crítica a uma ideia de sujeito humano que Foucault considerava metafísica, ou a crítica à ideia de conservar um “lugar” especial do humano no mundo, mesmo sem um deus a dizer que somos filhos dele.

Sartre encontrara uma saída airosa para o trauma da morte de deus, mas este humano, na realidade tornado ainda mais superlativo, teria de ser questionado. Por isso, se digo que valeria a pena reler Sartre não é para dizer que tinha mais razão do que Foucault ou qualquer outro, mas simplesmente porque voltar a lê-lo é importante para interpretar criticamente o tempo histórico que estamos a viver.

Interpretar criticamente é necessário porque, sem que nos apercebamos, muitos dos nossos investimentos na sociedade (alguns bem obsessivos) são cúmplices de uma prática de dominação, e por se terem tornado parte da normalidade social são aceites como naturais e, portanto, sem crítica. A isto Sartre chama prático-inerte.

Entre vários exemplos, o filósofo do existencialismo dá-nos um que vai ao coração de uma experiência do nosso tempo. Quando caracteriza o que devia ser a atitude do burguês francês no século XIX, Sartre faz um contraste com a atitude aristocrática. Contrariamente ao aristocrata, que nasceu aristocrata, o burguês, por princípio, não nasceu burguês. Tem por isso de demonstrar o seu estatuto. O burguês, ao contrário do aristocrata, precisa de ser distinto, adoptar comportamentos austeros, oprimir-se a si próprio. Aliás, só assim terá autoridade para exigir o mesmo aos outros.

Mas esta austeridade moral tinha um desígnio social: diferenciar, fazer a estratificação social que garante o direito ao privilégio e à vantagem de oportunidades, em tão ou maior grau que a conferida à aristocracia pelo nascimento. A igualdade estava assegurada por natureza, mas justamente para dessa forma libertar ainda mais o direito à desigualdade, a ponto de o tornar moral, motivo de aplauso, na proporção em que tenha sido alcançado pelo exercício da virtude da austeridade.

Este é, mutatis mutandis, o mesmo tipo de justificação da estratificação social que vivemos durante o período da política de austeridade em Portugal, na Grécia, Espanha, até há cerca de quatro anos. Por cá já passou, mas agora vai singrando noutros países, no Brasil de forma muito patente.

Tal como esta sedimentação do valor moral da austeridade, há outras valorizações que servem sobretudo o desígnio pouco justo da estratificação social. É o caso da meritocracia escolar. É difícil encontrar melhor paralelismo com a vontade de se distinguir através da austeridade de que Sartre falava do que a obsessão meritocrática de pais e docentes com as crianças na escola.

São os pais que se incomodam com os filhos que não têm 5 a tudo no ensino básico e mais de 18 valores no ensino secundário e que pagam explicações de Matemática e Português já não como uma tentativa de recuperar quem fica para trás, mas antes como um vantajoso suplemento vitamínico por antecipação. Ou que se indignam com as classificações inflacionadas dos miúdos de colégios privados, injustiça que os exames nacionais demonstrarão no final do ano, nem que para isso se inicie a preparação para os exames meses antes, fazendo deles refém a avaliação contínua e a vida normal de uma escola.

Anseia-se pela prova dos nove de quem realmente estudou, de quem realmente merece ficar no quadro de honra, ingressar no curso da média mais elevada, o direito ao maior horizonte de escolha e de oportunidades. Enfim, a mesma estratificação que a austeridade burguesa lá longe no passado propusera e que ainda nutre, sem grande proveito para o bem comum, o imaginário do nosso tempo, sem que sequer nos apercebamos de como é ideológico, conveniente e injusto.

Em tempos ansiosos, não é apenas a pressão dos pais a contribuir para este quadro. Os media, a pretexto da transparência e do conhecimento da verdade como interesse jornalístico, expõem na forma de rankings que escolas tiveram melhores resultados. Estas naturalmente tocam-se. Sobretudo as instaladas nos bairros mais burgueses reagem mal, muito mal, mudando as suas práticas para obterem melhores resultados, subirem no ranking e, quem sabe, algumas não repudiando a trapaça estatística, pedagogicamente catastrófica e vá lá saber-se por que razão aceitável no sistema de ensino privado, que é induzir o afastamento dos alunos que estragam a média.

O ciclo fecha-se com pais, sociedade e escolas a regozijarem-se com o acordo em torno de uma prática de selectividade e seriação que, sedimentando-se, passando à geração seguinte, torna-se um facto inerte, como se fosse da natureza das coisas, como se não houvesse ali nada a questionar.  Por isso Sartre perguntava a propósito da tal atitude distinta dos burgueses: “Quando a distinção se tornou prático-inerte, será que o indivíduo distinto ainda apreende a sua significação social como uma determinação do que era, no pai, a verdade da praxis?”. No ensino básico e secundário torna-se absolutamente pungente termos de reformular a pergunta para dar um passo atrás: será que nós pais sequer permitimos aos nossos filhos aperceberem-se criticamente da significação social da escola que lhes estamos a proporcionar activamente?

Em Portugal, este debate tem de ser levado a sério. A pergunta a pôr, por escolas, por pais, por jornais que promovem rankings de escolas, é esta: vamos permitir que o objectivo formador da escola seja subvertido e sirva de encosto ao objectivo de logo aí iniciar e justificar moralmente a estratificação e a desigualdade de oportunidades na nossa sociedade? No Brasil, fala-se de escola sem ideologia por nela se chamar a atenção para a importância do combate à desigualdade e à discriminação, e dos valores da inclusão social. Por cá, em silêncio, a escola vai derrapando, na inércia das suas práticas sedimentadas, no sentido oposto. Com a diferença de nem ser preciso dizer nada.

Há qualquer coisa muito errada aqui. Não se trata de não reconhecer lugar nenhum à meritocracia. Por exemplo, em contraste com a escola, a universidade deve ser, fora aspectos de discriminação positiva de grupos historicamente desfavorecidos, exclusivamente meritocrática. A vida profissional tem dimensões meritocráticas que se traduzem, e bem, em muito palpáveis diferenças de rendimento. Isto numa sociedade onde não pontue a batota. É para isso que há concursos de admissão, de progressão, consulta de currículos, etc.

Mas, o ponto é este: tal regime não deve ser o da escola, de nenhuma escola, muito menos da pública. É um escândalo notas afixadas em estabelecimentos de ensino do 1.º ciclo, mau grado a importância da avaliação como instrumento de verificação da formação adquirida. É um escândalo valorizar crianças anteciparem anos nos ciclos de estudos, torná-las estudiosas como se fossem atletas de alta competição, fazê-las sofrer a angústia da derrota e da exclusão. É um escândalo a facilidade com que se repelem os alunos mais difíceis que, pelo contrário, deveriam estar no centro do desafio pedagógico.

É um escândalo haver escolas que não compreendem aqueles alunos que, em alguma fase das suas adolescências, acham que a escola é apenas uma parte das suas vidas de descoberta. É um escândalo toda a histeria do ingresso no ensino superior em que, das duas uma: ou temos um acesso perfeitamente exequível dado existir, felizmente, uma oferta maior do que a procura para a generalidade dos cursos; ou, nos casos em que escasseia a oferta, a avaliação da vocação deve, a partir de certo nível, prevalecer sobre a do mérito. Tanto mais quanto o ingresso meritocrático induz a ideia de que a formação socialmente mais apreciada é a da melhor média.

Quantos médicos eram afinal melhores poetas ou historiadores de arte antiga? E quantos não puderam ser o que poderiam ter sido? Enfermeiros que talvez fossem melhores médicos, médicos que talvez tivessem sido melhores enfermeiros.

Em suma, o grande desafio da escola, a universalidade que ela pode perseguir, não é ir preparando, a cada final de ciclo de estudos, a base da estratificação social. Tudo ao contrário: é, ou devia ser, a construção de um lugar e um valor que permanece imune à estratificação, exactamente espaço e bem públicos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.