O debate em redor do rearmamento da Europa passou a dominar as manchetes dos jornais e a abertura de telejornais. A Europa está desarmada, qual capuchinho vermelho prestes a ser triturado pelos dentes afiados do lobo mau, que um dia virá de leste. Mas a realidade dos factos é que nem a Europa está desarmada nem a psicose de massas artificialmente fabricada se justifica com uma ameaça russa em aproximação, desprovendo de sentido a urgente corrida armamentista que se anuncia como inevitável e em que a Europa se prepara para embarcar.

É frequente argumentar que o enfraquecimento da capacidade de defesa europeia se deve a décadas de desinvestimento. Contudo, convém relembrar o desinvestimento recíproco da Rússia em defesa, a seguir ao fim da Guerra-Fria. As ameaças, se não desapareceram totalmente, pelo menos desvaneceram-se consideravelmente. Não havendo ameaça, não faz sentido manter uma capacidade militar que vá para além da dissuasão, estratégia de que a Europa nunca prescindiu.

De 2019 a 2023, o valor agregado das exportações de armamento europeias quase que triplicou o valor das exportações russas. Só a França tem maior capacidade exportadora do que a Rússia. Dos oito maiores países exportadores de armamento, a nível mundial, seis são europeus.

Surpreendentemente, os acérrimos defensores do rearmamento urgente devido a um ataque russo são também os mesmos que: (1) argumentam com a superioridade estratégica europeia (demografia, PIB, capacidade industrial, etc.), a qual é, por si própria, um tremendo fator de dissuasão; (2) e acreditam que a guerra na Ucrânia tem mostrado o quão fraco e ineficaz é o exército russo. Conseguem fazer a quadratura do círculo. A Europa vai ser invadida por um inimigo incapaz e incompetente. Portanto, temos de nos armar até aos dentes.

A Europa tenta delinear uma “estratégia” com base naquilo a que George Orwell chamou de double thinking, isto é, acreditar simultaneamente em duas ideias que se excluem mutuamente. O debate sobre o tema deve começar por esclarecer qual a finalidade do rearmamento, para que serve? Após uma análise cuidadosa do White Paper produzido por uma equipa liderada pela Alta Representante para a Política Externa da UE Kaja Kallas, não ficou claro qual seria a finalidade do rearmamento europeu. São tantas as ameaças e tão diferentes (Rússia, China, Ártico, Norte de África), que ficamos sem perceber exatamente o que se pretende.

Embora não seja dito de modo explícito, não restam dúvidas ser a Rússia a ameaça percebida ficando, no entanto, por saber qual a postura estratégica que a Europa vai adotar: dissuasão defensiva, ofensiva ou é todo este esforço apenas para ajudar a Ucrânia? A resposta a esta questão crucial é ambígua.

A definição de uma estratégia passa por identificar claramente, por esta ordem, os objetivos a atingir, os caminhos a seguir e os meios (objectives, ways and means). A proposta da presidente da Comissão europeia ao Conselho Europeu concentrou-se apenas nos meios – como dotar os estados-membros dos recursos financeiros para se rearmarem, sendo omissa quanto aos objetivos e aos caminhos a seguir. Ou seja, Ursula Van der Leyen (VDL) começou e terminou nos meios.

Qual o objetivo?

A proposta da Comissão sobre o rearmamento europeu usava o termo “dissuasão,” sugerindo a adoção de uma estratégica predominantemente defensiva. Mas, as dúvidas sobre este propósito são enormes. Os lugares tenentes de VDL falam em escalar o conflito e confrontar militarmente a Rússia, sem que esta tenha alguma vez repudiado essas declarações.

Kaya Kallas, a mesma cujo marido fazia negócios com a Rússia já depois do início do conflito na Ucrânia, disse que era preciso destruir e fragmentar a Rússia; e o comissário europeu para a defesa e espaço, o lituano Andrius Kubilius afirmou ser necessário prolongar a guerra até exaurir a Rússia e a Europa adquirir capacidades para a destruir.

Exatamente no mesmo sentido foi o alemão Bruno Kahl, diretor do Serviço Federal de Informações, ao afirmar que um acordo de paz não beneficiará a Europa se for alcançado antes dos próximos cinco anos. Segundo ele, a Rússia está a preparar uma grande guerra com a NATO. O grande argumento em abono desta tese é o facto “das perdas russas estarem a ser repostas e a indústria de defesa do país está a produzir mais do que o necessário para a atual guerra.”

Por sua vez, o Inspetor Geral das Forças Armadas alemãs general Carsten Breuer canta segundo a mesma pauta de música. A ministra dos negócios estrangeiros da Alemanha Annalena Baerbock fala em mobilização nacional. O tradicional rigor orçamental alemão está prestes a desvanecer-se, com o governo a preparar-se para contrair uma dívida no valor de mais de 500 mil milhões de euros, a gastar nos próximos 12 anos. Para além disso, o Governo alemão criou um instrumento para aumentar a dívida num total de cerca de um trilião de euros, ou mesmo mais, envolvendo uma alteração constitucional.

Como se não houvesse amanhã, a Dinamarca acelerou a introdução do alistamento militar obrigatório para as mulheres, passando o seu início de 2027 para 2026; o presidente Macron diz que a Rússia é uma ameaça à França e à Europa e, seguindo o exemplo da Suécia, mandou distribuir manuais de sobrevivência à população, como se a guerra estivesse à porta, criando uma ansiedade absolutamente injustificada; as autoridades polacas anunciaram o início dos preparativos para uma possível guerra com a Rússia introduzindo, para o efeito, formação militar em massa da população, e o primeiro-ministro polaco Donald Tusk quer ter armas nucleares e anunciou o aumento das forças armadas para meio milhão de soldados.

Por seu lado, a Comissão teve o despautério de pedir à população para que armazene água, medicamentos, pilhas e alimentos para sobreviver por três dias sem assistência externa em caso de emergência. É difícil não considerar isto uma preparação para a guerra. Este tom reflete a narrativa a que recorrem os países bálticos. Como notou a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, referindo-se a Kaja Kallas “se alguém a estiver a ouvir, parece que estamos em guerra com a Rússia, e essa não é a linha política da UE.”

Independentemente daquilo que se pense, a verdade é que a UE se está a preparar para a guerra. Parece não restarem muitas dúvidas de que os líderes europeus não têm nas suas mentes uma estratégia de dissuasão, mas sim outra mais exigente em meios, para além de ser mais perigosa. Daí a alegada necessidade de um rearmamento urgente.

O desvario

A ideia do rearmamento europeu não pode ser dissociada de outros acontecimentos em curso que influenciam decisivamente a narrativa armamentista. O principal prende-se com a acusação de que os EUA não honrarão as suas obrigações no âmbito do artigo V, em caso de um ataque militar da Rússia. Nada até agora o indicia.

A Estratégia Nacional de Segurança, da Administração Trump, em 2017; era clara: “A aliança da NATO de Estados livres e soberanos é uma das nossas grandes vantagens em relação aos nossos concorrentes, e os Estados Unidos continuam empenhados no Artigo V do Tratado de Washington.” Pretender que os europeus assumam maiores responsabilidades, não pode ser confundido com a retirada das garantias de segurança por parte de Washington. É intelectualmente desonesto misturar factos distintos apresentando-os como fazendo parte de uma única realidade.

Sem os EUA terem alguma vez manifestado intenção de abandonar a proteção nuclear da NATO, e após terem declarado a intenção em a manter, a Alemanha veio sugerir a sua substituição por uma outra proteção a ser fornecido pela França e Reino Unido (RU). Esta proposta do novo chanceler alemão Friedrich Merz, até recentemente alto quadro da BlackRock Germany, representa a sua total descredibilização. A capacidade nuclear agregada dos dois países não só não constitui uma alternativa ao guarda-chuva nuclear norte-americano, como nem sequer se aproxima da proteção por ele conferida.

Começando logo pelo facto do RU não dispor de capacidade nuclear autónoma. O programa nuclear inglês é um prolongamento do norte-americano. Se os EUA quiserem, o RU não dispara nenhum míssil. Depende dos EUA para tudo (manutenção, arquitetura, teste dos submarinos, etc.) e os misseis Trident são alugados aos EUA e encontram-se, na sua maioria, na Geórgia (EUA). Não deixa de ser hilariante a informação dada pelo desbragado almirante britânico Chris Parry de que um submarino com misseis Trident poderia varrer 40 cidades russas da face da terra. Por outro lado, o programa nuclear francês foi concebido para proporcionar dissuasão nuclear à França. Estendê-lo à Europa é uma ideia que tem tanto de perigosa como de ridícula.

Os dirigentes europeus estão amuados com a nova Administração norte-americana que lhes exige uma maior participação financeira na NATO. Despeitados pelo novo patrão os tratar com maior rudeza passaram a comportar-se de um modo insensato, sendo os principais responsáveis pela rotura com Washington a que temos assistido. Sem pensamento estratégico parecem dispostos a arrastar a UE para uma grande guerra contra a Rússia.

A União Europeia caminha sonâmbula para uma guerra perdida, à qual não tem capacidade para alterar o destino, cujo instigador está a abandonar por ter percebido que não a vai ganhar, tal como aconteceu no Afeganistão, coisa que os europeus ainda não atingiram.

Enquanto a necessária modernização das forças armadas europeias se basear em pressupostos errados, nada de bom se poderá esperar dela. Como diz Matos Gomes “este mantra [do rearmamento] assenta num conjunto de sofismas, de deturpações grosseiras… faz parte da comédia de enganos com que os dirigentes da Europa estão a iludir os europeus.” A Europa, que nasceu como um projeto de paz vencedora do prémio Nobel 2014, está a converter-se num projeto de guerra.