[weglot_switcher]

Para que servem as comissões parlamentares de inquérito?

É o ritual do habitual: a cada novo escândalo, nova comissão parlamentar de inquérito. O Parlamento marca terreno nos casos que mancham a democracia, mas o resultado dos trabalhos é sempre inócuo ou inconsequente. Insistir em tratar assuntos graves como meros palcos de teatro político degrada a credibilidade do regime.
23 Julho 2018, 11h15

Não há coincidências. A chegada da troika, em 2011, inaugurou uma era fértil em comissões parlamentares de inquérito (CPI). Nas últimas duas legislaturas (a atual e a anterior), onze CPI – 11! – ocuparam os deputados na Assembleia da República. Deixando de lado a X Comissão de Inquérito à Tragédia de Camarate (um infeliz caso que ficará provavelmente num eterno limbo de incertezas), todas as outras estão direta ou indiretamente relacionadas com a crise e as relações perigosas e casos de corrupção que a precipitaram.

Umas ficaram famosas, como a CPI à derrocada do BES. De outras já nem nos lembramos, como a CPI sobre os Estaleiros de Viana do Castelo, ou a CPI sobre a nomeação e demissão de António Domingues na Caixa Geral de Depósitos. Importa deixar a lista completa destas dez, com as respetivas ligações ao portal do Parlamento, para quem queira dedicar-se à ingrata e infeliz tarefa de avaliar a utilidade do trabalho feito. Das mais próximas às mais distantes, aqui estão as CPI que vasculharam as disfunções de um Estado caído em falência:

 

1Comissão Parlamentar de Inquérito ao Pagamento de Rendas Excessivas aos Produtores de Eletricidade

Criada a 23 de maio passado e ainda em atividade.

 

2 – Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar à atuação do XXI Governo Constitucional no que se relaciona com a nomeação e a demissão da Administração do Dr. António Domingues

Período de atividade: 2017-03-14 a 2017-11-25.

 

3Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e à Gestão do Banco

Período de atividade: 2016-07-05 a 2017-07-18.

 

4Comissão Parlamentar de Inquérito ao processo que conduziu à venda e resolução do Banco Internacional do Funchal (BANIF)

Período de atividade: 2016-02-03 a 2016-10-12.

 

5Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES e do Grupo Espírito Santo

Período de atividade: 2014-10-09 a 2015-05-08.

 

6Comissão Parlamentar de Inquérito aos Programas Relativos à Aquisição de Equipamentos Militares (EH-101, P-3 Orion, C-295, torpedos, F-16, submarinos, Pandur II)

Período de atividade: 2014-05-07 a 2014-10-17.

 

7Comissão Parlamentar de Inquérito para Apuramento das Responsabilidades pelas Decisões que Conduziram ao Processo de Subconcessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo

Período de atividade: 2014-02-11 a 2014-07-09.

 

8Comissão Parlamentar de Inquérito à Celebração de Contratos de Gestão de Risco Financeiro por Empresas do Setor Público

Período de atividade: 2013-05-28 a 2014-02-06.

 

9Comissão Parlamentar de Inquérito à Contratualização, Renegociação e Gestão de todas as Parcerias Público-Privadas do Sector Rodoviário e Ferroviário

Período de atividade: 2012-05-03 a 2013-07-05.

 

10Comissão Parlamentar de Inquérito ao Processo de Nacionalização, Gestão e Alienação do Banco Português de Negócios S.A.

Período de atividade: 2012-03-21 a 2012-11-17.

 

A estas 10 comissões de inquérito criadas desde 2012, acrescente-se uma outra comissão à nacionalização do BPN e mais uma sobre a qualidade da regulação e supervisão bancária, ambas criadas em 2008, na sequência da derrocada do banco de José Oliveira e Costa. Foram de algum modo as precursoras da onda de CPI salvadoras do regime democrático.

Um marciano que aterrasse em Portugal e olhasse para esta lista de trabalho feito acharia que há seis anos que a Assembleia da República está a limpar o regime. Que, seja quem for o Governo do dia, o Parlamento está diligentemente a apurar responsabilidades, a identificar fragilidades estruturais no sistema político, na organização económica, no ecossistema regulatório, a tomar medidas políticas e legislativas para corrigir as disfunções e prevenir novas crises. Acharia que tínhamos aprendido com a amarga experiência da troika e que estávamos a tomar passos para sermos um país, infelizmente mais empobrecido mas pelo menos acordado, finalmente mais atento e organizado, empenhado em criar as condições para resgatar o Estado da captura pelos grandes interesses privados e a libertar a força criadora de uma economia de mercado, livre do negócio do acesso, da cunha e da lei ou decisão regulatória feita à medida. Acharia esse marciano, em suma, que depois da pancada tinha vindo a lição e que estávamos no bom caminho.

Surpreendido ficaria esse marciano em perceber que não é essa a perceção dos portugueses – e com boa razão. O último Barómetro Global da Corrupção da Transparency International, publicado em novembro de 2016, mostra que 51% dos portugueses aponta a corrupção como um dos três principais problemas do país – é a oitava perceção de corrupção mais elevada de um conjunto de 42 países da Europa e Ásia Central (incluindo os Balcãs e as antigas repúblicas soviéticas). O Eurobarómetro da Comissão Europeia tem resultados semelhantes. Em outubro de 2017, 92% dos portugueses inquiridos reconhecia a corrupção como um problema comum. E apesar de, nessa altura, já termos um bom currículo de comissões de inquérito, 54% dos portugueses (contra uma média da União Europeia de 43%) achava que a corrupção tinha piorado nos três anos anteriores.

Obviamente, as perceções dos cidadãos em relação a um fenómeno tão complexo como a corrupção não se podem interpretar de forma simplista, sendo evidente que há muitos fatores, para além e acima do desempenho das CPI, que contribuem para formar a opinião das pessoas – incluindo a eficácia do sistema de justiça e até a evolução da conjuntura económica, que torna mais ou menos presentes as feridas provocadas pelo mau funcionamento das instituições. É melhor, portanto, avaliar o trabalho destas CPI pelos méritos de cada uma e medi-las no seu conjunto com uma pergunta simples: para que serviram? Ou, posto de outra maneira, há um antes e um depois destas CPI em cada um dos temas que trataram? Infelizmente não há.

Nesta lista de 10 inquéritos parlamentares, uns tiveram melhor imprensa do que outros. Se, por exemplo, a CPI ao BES ficou mais famosa do que a da compra dos Pandur e dos submarinos é simplesmente porque no que tocou às compras do setor da Defesa os deputados encontraram lama suficiente para sujar governos das várias cores. Aliás, frequentemente é para isto que servem as CPI: embaraçar um Governo e uma maioria com um caso de corrupção de Estado, passando ao lado de outros casos de corrupção de Estado que podiam ter envergonhado outras maiorias. No caso do BES, cuja CPI mereceu a autocongratulação entusiástica dos seus próprios membros precisamente por não ter gerado trocas de galhardetes partidários, o tom foi diferente. A atenção centrou-se na gestão do banco e nos reguladores – não porque não houvessem amplas promiscuidades políticas para investigar, mas porventura exatamente porque havia promiscuidades políticas suficientes para embaraçar todos os partidos. Os deputados publicaram um relatório com críticas equitativas aos gestores do banco e aos reguladores, festejaram o seu próprio contributo para a descoberta da verdade e passaram à frente.

 

“Frequentemente é para isto que servem as comissões parlamentares de inquérito: embaraçar um Governo e uma maioria com um caso de corrupção de Estado, passando ao lado de outros casos de corrupção de Estado que podiam ter envergonhado outras maiorias”.

 

É este o drama essencial das CPI tal como têm sido conduzidas. Ou são inócuas, porque não chegam a conclusões úteis, ou são inconsequentes porque, chegando a conclusões importantes que identificam fragilidades legais ou falhas institucionais, não geram qualquer alteração de normas ou de políticas. Passadas todas as críticas ao Banco de Portugal que resultaram do trabalho nas CPI ao BES ou ao BANIF, que lei foi alterada? Que política pública foi revista? Que nova posição foi levada às instâncias europeias, para a reforma dos sistemas de controlo? Depois dos parabéns trocados entre os deputados, o que ficou de novo para tranquilizar o país de que um escândalo semelhante não acontecerá?

A CPI à compra de equipamentos de Defesa revelou, em 2014, falhas sérias nos mecanismos de controlo e de fiscalização do Ministério da Defesa Nacional. No início de 2016, uma avaliação da Transparency International reiterava os problemas de controlo interno e os riscos de corrupção associados ao setor. Alguma dessas fragilidades institucionais foi resolvida? A julgar pelo fiasco de Tancos e pelos casos entretanto conhecidos de corrupção no fornecimento de refeições e outras áreas operacionais das Forças Armadas, passada a distribuição de lama da CPI, nada se tirou de útil para a reforma do setor.

O exemplo mais flagrante da inutilidade das CPI (ou talvez apenas o exemplo que conheço melhor) é o das Parcerias Público-Privadas (PPP). Em 2012, com a troika a apertar o garrote e um enorme clamor público contra os negócios ruinosos das PPP rodoviárias, a Assembleia da República criou uma CPI para se ocupar do caso. Pela mesma altura, era publicado um relatório de auditoria do Tribunal de Contas absolutamente demolidor, o qual apontava as originalidades jurídicas, o descontrolo das contas e a falta de transparência de todo o processo de contratação e gestão das parcerias em vigor. Estancar a sangria das PPP, recorde-se, era um dos compromissos assumidos com a troika no plano de resgate. A Transparência e Integridade – Associação Cívica (TIAC), aliás, apontou logo em 2011, um mês após o pedido de resgate, qual a forma justa de renegociar as PPP: fazer uma avaliação independente dos investimentos realizados e acertar contas com os concessionários, se necessário resgatando para o Estado a gestão das estradas.

Essa comissão de inquérito, honra lhe seja feita, chegou a conclusões semelhantes. O relatório final tecia críticas violentas à forma como foram negociados e implementados os contratos de concessão, com os custos gigantescos que impunham ao contribuinte. Apontava as pressões que tinham vindo do Governo de José Sócrates para se fazer obra através de PPP. A incapacidade do Estado para defender o interesse público sem recorrer a consultores externos que apareciam depois, muitas vezes, do outro lado da mesa. Chegava até a colocar a dúvida sobre se os estudos de tráfego que determinavam os pagamentos a fazer aos concessionários não teriam sido artificialmente inflacionados para beneficiar os privados – algo que está mesmo a ser investigado pelo Ministério Público.

Vale a pena citar as conclusões:

“O modelo PPP, tal como tem vindo a ser desenvolvido em Portugal pelos últimos Governos, cria um sobrecusto ao colocar nos parceiros privados a responsabilidade de procura de financiamento de projetos. Em todas as PPP analisadas, o custo do financiamento direto do Estado, através da emissão de dívida, seria sempre mais barato;

[…] A Comissão [de Inquérito] verifica que os encargos com as PPP rodoviárias são excessivos fruto da sua massificação, da sua desordenada implementação, da ausência de estudos que suportem o seu benefício económico-financeiro e da decisão puramente política que se sobrepôs, em muitos casos, à eficiência e à eficácia económica e da satisfação da necessidade pública dos projetos;

[…] A Comissão entende que o Governo deve encetar um processo de renegociação com as concessionárias por forma a defender o interesse público de encargos excessivos e avultados. Para os casos em que essa renegociação não for bem-sucedida, ou seja onde não seja defendido de forma inquestionável o interesse publico, o Estado deve equacionar o resgate da PPP em causa” [sublinhado meu].

Não podia ser mais claro. E depois, o que foi feito? O processo de renegociação do Governo de Pedro Passos Coelho foi tão opaco como as concessões originais do Governo de José Sócrates. Os contratos que tinham anexos confidenciais, vedando todo o negócio ao olhar dos cidadãos e dos peritos, continuam a ter os mesmos anexos confidenciais. Muitas “renegociações” consistiram na mera transferência de encargos para o Estado, designadamente com a manutenção das estradas, pelo que ficámos muito longe de defender “de forma inquestionável” o interesse público. A renegociação das PPP prevista no resgate da troika ficou, no essencial, por fazer, acabando por ser compensada com o “brutal aumento de impostos” de Vítor Gaspar, que não estava previsto em memorando algum e que ainda hoje não foi revertido. Pagámos nós o custo da inoperância.

 

“Os contratos que tinham anexos confidenciais, vedando todo o negócio ao olhar dos cidadãos e dos peritos, continuam a ter os mesmos anexos confidenciais. Muitas ‘renegociações’ consistiram na mera transferência de encargos para o Estado, designadamente com a manutenção das estradas, pelo que ficámos muito longe de defender ‘de forma inquestionável’ o interesse público”.

 

Em suma, o Parlamento que disse que as PPP eram um negócio gravíssimo e que não se podia deixar tudo na mesma deixou tudo… na mesma! Imediatamente depois de publicadas, as conclusões da CPI foram ignoradas – até hoje. Teve de ser um movimento de cidadãos a tomar o passo seguinte que a Assembleia da República nunca tomou: propor uma lei, através de uma iniciativa legislativa de cidadãos (da qual sou um dos proponentes) para, finalmente, fazer o resgate das PPP pela fórmula que apresentámos em 2011, indemnizando os concessionários no valor real dos investimentos.

Não é coisa de somenos: a avaliação mais recente do Eurostat diz-nos que as 21 estradas atualmente em regime de PPP valem 5,5 mil milhões de euros. Ora, por estas estradas que valem 5,5 mil milhões o Governo tem previstos pagamentos aos privados de 18 mil milhões até ao fim dos contratos, em 2039! Os cálculos dos promotores da Iniciativa Legislativa de Cidadãos indicam que, ainda que o Governo tenha de se financiar nos mercados para fazer o resgate destes 5,5 mil milhões, será ainda assim possível poupar 11 mil milhões de euros. Dito de outra maneira, não há esperança de recuperar de forma significativa qualquer capacidade de investimento público em Portugal sem antes nos livrarmos deste abuso. Infelizmente, o Parlamento que foi muito assertivo a apontar o problema continua, seis anos e duas maiorias depois, a arrastar os pés na solução. Podemos esperar diferente da CPI que agora investiga as rendas excessivas na energia?

A democracia é o músculo mais importante da vida de uma comunidade. Se não a exercitamos, atrofia. O afã inquiridor do Parlamento devia ter desencadeado uma energia reformadora que se alastrasse às várias áreas da vida nacional e libertasse o país das más decisões e dos maus decisores. Infelizmente, a experiência mostra-nos que os partidos têm uma abordagem tática e míope às suas responsabilidades constitucionais. Do ponto de vista da manobra política ou do ganho eleitoral, levantar problemas é mais lucrativo do que construir soluções – com a vantagem de que para fazer ruído não é necessário atacar nenhum dos garrotes que estrangulam o desenvolvimento do país. Esta perda progressiva de visão arrisca-se a ser a cegueira do regime democrático. Os partidos fariam bem em atentar nisso, antes que seja tarde demais.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.