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Para um debate sobre a política externa portuguesa numa época de turbulência

Dentro dos limitados recursos de que o nosso país dispõe – condicionante presente na política externa portuguesa desde a fundação de Portugal – devemos procurar contribuir para superar crises que ameaçam a nossa segurança, cultura política e modo de vida.
31 Julho 2018, 19h04

Marcada desde sempre pela gestão de dependências externas, a política externa portuguesa tem no seu cerne, segundo Tiago Moreira de Sá, dois vetores – o continental e o atlântico – e três grandes eixos estruturais – o europeu, o atlântico e o lusófono – que “se mantêm constantes durante vários séculos, mudando apenas no grau e na forma, consoante a evolução da distribuição do poder no sistema internacional” [1]. 

A última grande redefinição que modificou o equilíbrio entre estes eixos deu-se em resultado da transição democrática portuguesa que, de acordo com Samuel P. Huntington, inaugurou a terceira onda de democratização [2]. Ultrapassado o trilema entre “reforçar o papel de Portugal como potência ocidental e da NATO, a procura de convergência com as ex-colónias e com o terceiro-mundismo e o alinhamento com a URSS” [3], que se colocou desde os acontecimentos de 25 de Abril de 1974 até à tomada de posse do I Governo Constitucional, em 1976, a política externa portuguesa passou a ter como principal prioridade a opção europeia, complementada pela presença na Aliança Atlântica, da qual Portugal é um dos membros fundadores. 

A integração de Portugal nas instituições da então Comunidade Económica Europeia e o seu papel enquanto membro da NATO e aliado da principal potência marítima, os EUA (até à II Guerra Mundial, a principal potência marítima havia sido o Reino Unido, não sendo despiciendo referir que a Aliança Luso-Britânica é a mais antiga aliança em vigor em todo o mundo e foi durante séculos um elemento central da política externa portuguesa) foram e são opções consensuais entre os partidos políticos que compuseram até há pouco tempo o chamado arco da governação, nomeadamente, o PS, o PSD e o CDS, bem como no seio da generalidade da sociedade portuguesa. Há de tal forma um consenso generalizado sobre estas opções que a política externa raramente constituiu objeto do debate político ao longo das últimas décadas, exceção feita às ocasionais contestações por parte do PCP e do BE, entretanto remetidas ao silêncio após a constituição da solução de Governo do PS que apoiam desde finais de 2015.

Todavia, pese embora as traves-mestras da política externa portuguesa estejam definidas e consolidadas, conforme salienta Tiago Moreira de Sá, “a orientação estratégica externa de Portugal, que é definida sempre dentro deste quadro, pode e tem de variar em função das alterações na distribuição de poder ao nível internacional ou regional”, e tal como o mesmo autor sublinha, tendo em consideração a atual hegemonia da Alemanha no seio da União Europeia, torna-se cada vez mais premente discutir a política externa portuguesa [4].

Aliás, não é apenas a hegemonia alemã na União Europeia que nos deve impelir a debater a nossa política externa, mas também o facto de a Europa se encontrar há já alguns anos sujeita a um elevado grau de turbulência resultante de diversos processos e crises, designadamente, a crise da Zona Euro, o euroceticismo, a ascensão do populismo, o terrorismo islâmico, a crise dos refugiados, a crise na Ucrânia e a anexação da Crimeia pela Rússia, o “Brexit” e a reemergência de movimentos secessionistas ou que, pelo menos, reivindicam um maior grau de autonomia para as suas regiões. Alguns destes acontecimentos e processos encontram-se intrinsecamente ligados, ameaçam a coesão da União Europeia e poderão estar na origem de alterações profundas que têm potencial para modificar a natureza liberal das democracias europeias, como, aliás, já se pode observar, por exemplo, na Hungria e na Polónia.

Este panorama não era, de todo, previsível no início da década de 1990, quando, após a vitória do bloco ocidental sobre a União Soviética, Francis Fukuyama recuperou a ideia de fim da história de Hegel e Alexandre Kojève para afirmar que o advento da democracia liberal assente numa ordem económica capitalista representaria precisamente o culminar da história, uma época em que nenhuma ideologia seria capaz de rivalizar com a democracia liberal e a economia de mercado [5]. Para John Gray, esta convicção é uma “expressão da fé iluminista de que a humanidade evolui para uma civilização universal que, de forma diferente, moldou regimes comunistas” e “foi mais reforçada do que enfraquecida pelo colapso soviético” [6]. 

Com efeito, a expansão de ideias e instituições características das sociedades ocidentais para diversos pontos do mundo conduziu à globalização deste modelo político, a democracia liberal, e de um modelo económico, o capitalismo assente no livre mercado. Robert Gilpin assinala que a globalização económica fez aumentar rapidamente o comércio internacional, subjazendo-lhe também a eliminação de barreiras ao comércio livre e, a partir da década de 1970, os processos de desregulação e privatização que abriram economias nacionais às importações e estimularam diversos países a expandir os respetivos setores exportadores. A par da criação de novos instrumentos financeiros e avanços tecnológicos nas comunicações e transportes, a globalização económica contribuiu para aumentar significativamente o nível de integração do sistema financeiro internacional. Neste ambiente ganharam especial relevância as empresas multinacionais e transnacionais, responsáveis por elevados fluxos de investimento direto externo em diversos países e pelo aumento do comércio internacional, contribuindo para transformar significativamente a economia internacional [7].

Contudo, a crise financeira de 2008 e a turbulência que se lhe seguiu, com efeitos no eclodir da crise das dívidas soberanas e na crise do euro, vieram fomentar a percepção já existente de que há países e classes sociais que beneficiaram da globalização económica (as elites dos países mais ricos e as classes médias que emergiram na China, Índia, Brasil e outros países em desenvolvimento) e outros que foram prejudicados por este processo (as classes médias dos países desenvolvidos). Esta ideia, ainda que verídica, passou a ser habilmente utilizada e explorada por determinados políticos em regimes demo-liberais com o duplo objectivo de conquistar segmentos do eleitorado prejudicados pela globalização – para estes políticos, o povo verdadeiro, puro ou autêntico – e contestar as elites que a fomentaram ao longo das últimas décadas. 

Esta é uma característica elementar do populismo, definido por Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser como “uma ideologia de baixa densidade que considera que a sociedade está, em última instância, dividida em dois campos homogéneos e antagónicos – ‘o povo puro’ versus ‘a elite corrupta’ – e que defende que a política deveria ser uma expressão da volonté génerale (vontade geral) do povo” [8]. Considerar o populismo enquanto ideologia de baixa densidade é da maior importância, querendo significar simplesmente que o populismo per se tem um reduzido conteúdo ideológico normativo, aparecendo normalmente ligado a outras ideologias que, essas sim, procuram articular determinadas conceções a respeito da natureza humana, da sociedade e do poder político, estabelecendo a partir destas uma determinada visão do mundo. O mesmo é dizer que o populismo se acopla a ideologias quer de esquerda quer de direita, existindo inúmeros exemplos de políticos e partidos de ambos os quadrantes que articulam uma retórica populista com as mais diversas ideologias. Existem, assim, subtipos do populismo, mas raramente se encontrará o populismo numa forma pura [9].

Central no populismo é a sobredita retórica que opõe o povo moralmente puro à elite corrupta que prioriza os seus interesses particulares face aos interesses do povo e/ou do país, ou seja, ao bem comum que está na base da vontade geral [10] teorizada por Rousseau, que “é sempre reta e tende sempre para a utilidade pública” [11], resultando da dedução racional dos homens. É a vontade geral que enforma a soberania popular à qual todos os constituintes de um corpo político têm de se submeter, já que, como observa Isaiah Berlin, para Rousseau o “Estado somos nós e outros como nós, todos buscando o nosso bem comum” [12]. Rousseau procura restaurar a clássica conceção republicana da liberdade como participação política, privilegiando a democracia directa e criticando a democracia representativa. Este entendimento está implícito na ideia de vontade geral, desconstruída por Joseph Schumpeter [14], pelo que não surpreende, da parte de líderes populistas, o apoio e a utilização de “mecanismos democráticos diretos, como os referendos e os plebiscitos”, podendo até constatar-se que “existe uma afinidade electiva entre o populismo e a democracia direta, assim como outros mecanismos institucionais que sejam úteis para cultivar uma relação direta entre o líder populista e o seu eleitorado” [14]. 

A crítica de Schumpeter às ideias de bem comum e vontade geral de Rousseau, fundamentalmente, assenta na impossibilidade de se deduzir racionalmente um bem comum, visto que os indivíduos divergem entre si quanto às conceções de bem, não existindo uma conceção única discernível e desejada por todos que esteja na base da vontade geral, pelo que, em consequência, esta também não existe na sua acepção ideal, sendo apenas, frequentemente, uma vontade fabricada, o resultado e não a causa do processo político. Se aceitarmos esta crítica e tivermos ainda em consideração as observações de Robert A. Dahl a respeito da impraticabilidade da democracia direta nas sociedades contemporâneas e da superioridade da democracia representativa [15], torna-se claro que, como Mudde e Kaltwasser observam, “uma das consequências práticas do populismo é a promoção estratégica de instituições que permitam a construção de uma suposta vontade geral”.  Ora, há quem creia, de forma idealista, que o populismo pode ser saudável por pretender “dar voz a grupos que não se sentem representados pelo poder político instalado”, ignorando que o populismo “pode conduzir facilmente ao apoio de tendências autoritárias”, ao alicerçar-se numa conceção de vontade geral que, além de fabricada, é absoluta, exclusivista e baseia-se na homogeneidade do povo, podendo “legitimar ataques autoritários e iliberais a todos os que (supostamente) ameaçam” esta homogeneidade [16].

Nada disto é particularmente surpreendente porquanto, conforme sublinha Jan-Werner Müller, “além de serem antielitistas, os populistas são sempre antipluralistas. Os populistas pretendem que eles, e só eles, representam o povo”. Trata-se, porém, de uma representação que não é empírica mas moral, pois sabem que os seus opositores políticos pertencem ao mesmo povo ou nação que eles próprios, mas retratam-nos como “parte de uma elite imoral e corrupta”. Além do mais, quando governam, os populistas “recusam-se a reconhecer a legitimidade de qualquer oposição”, pois a lógica populista implica que os partidos populistas sejam os representantes únicos e legítimos da suposta vontade geral do povo moralmente puro, o que permite classificar os que não os apoiam como imorais, que podem nem sequer fazer verdadeiramente parte do povo conforme os populistas o entendem. Nas palavras de Müller, “isto é outra maneira de dizer que o populismo é sempre uma forma de política identitária (embora nem todas as versões de política identitária sejam populistas). O que decorre deste entendimento do populismo como forma exclusivista de politica identitária é que o populismo tende a representar um perigo para a democracia. Pois a democracia requer pluralismo e o reconhecimento de que é necessário encontrar termos equitativos para vivermos juntos como cidadãos livres e iguais mas também irredutivelmente diversos”. O populismo não é apenas uma “inofensiva retórica de campanha ou um mero protesto que se extingue logo que um populista conquista o poder. Os populistas podem governar como populistas”, tendendo estes governos a exibir três características, nomeadamente, “tentativas de sequestrar o aparelho de Estado, corrupção e ‘clientelismo de massas’ (…) e esforços sistemáticos para reprimir a sociedade” [17].

Se dúvidas houvesse a respeito das características do populismo, das suas tendências autoritárias e da sua perigosidade para a democracia liberal, bastaria reparar na Turquia de Recep Tayyip Erdoğan, na Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Bolívia de Evo Morales, na Hungria de Viktor Orbán, na Polónia controlada por Jarosław Kaczyński, nos movimentos Occupy Wall Street e Tea Party e em Bernie Sanders e Donald Trump nos Estados Unidos da América, em partidos políticos como o UKIP no Reino Unido (um dos principais defensores do “Brexit”), a Frente Nacional em França, o Podemos em Espanha, o Syriza na Grécia, o PVV na Holanda, entre muitos outros exemplos ilustrativos do que acima ficou exposto a respeito do populismo. 

No caso dos países europeus, não é despiciendo referir que os partidos populistas, pese embora adotem posições diversificadas em relação a múltiplas matérias e articulem ideias de várias ideologias, genericamente convergem no euroceticismo, na defesa de medidas económicas protecionistas e, pelo menos à direita, numa narrativa assente num nacionalismo exacerbado e frequentemente xenófobo. Isto resulta dos principais problemas com que a União Europeia se tem debatido nos últimos anos: a crise das dívidas soberanas, a crise do euro, a crise dos refugiados e o terrorismo islâmico. A estes acrescem ainda o “Brexit”, fruto, em larga medida, de dinâmicas políticas domésticas do Reino Unido, e o ressurgimento de movimentos secessionistas, como na Escócia e na Catalunha, ou que, numa forma mitigada, com um teor mais regionalista, reclamam mais autonomia face ao Estado central, como acontece nas regiões italianas da Lombardia e Veneto.

Todos estes processos interligados colocam obstáculos e desafios à União Europeia e às lideranças políticas europeias, podendo inclusivamente falar-se numa crise destas lideranças. Visto que a crise do euro elevou a Alemanha à condição de líder hegemónico da União Europeia, é sobre aquela que recaem as principais responsabilidades pela inexistência de uma estratégia que permita enfrentar os vários problemas de forma decisiva. Aliás, de acordo com Ulrich Beck, a estratégia de Angela Merkel tem sido a de utilizar a hesitação como forma de dominação, caracterizando-se pela sua “tendência para não agir, não agir ainda, agir mais tarde – para hesitar,” pois que o seu verdadeiro interesse passa pela vitória nas eleições alemãs e consequente manutenção no poder, assim se podendo compreender por que insiste numa “política interna europeia que serve sobretudo à preservação do poder nacional” [18]. No que concerne à União Europeia, esta estratégia torna-se particularmente perigosa, na medida em que, como assinala o mesmo autor, “como a Alemanha é o país mais rico, agora é ela que manda no centro da Europa” [19].

Beck escreveu estas palavras em 2012, no contexto da crise do euro, seguramente longe de imaginar algumas das consequências que a estratégia de Merkel viria a ter nos anos seguintes. A resposta inicial da chanceler alemã à crise dos refugiados, que passou pelo acolhimento de cerca de um milhão de refugiados pela Alemanha, encontra-se na origem de uma alteração recente e, para muitos, chocante na política alemã: a entrada do AfD, um partido populista de extrema-direita, no Bundestag, após alcançar um resultado de 12,6% nas eleições federais alemãs, que se traduziu na atribuição de 94 lugares no parlamento alemão e elevou o partido a terceira maior força política no país.

Ora, sendo o populismo uma ameaça à democracia liberal, o turbulento panorama com que nos defrontamos no Ocidente é evidentemente perigoso pois coloca em risco regimes e instituições demo-liberais, o projecto de integração europeia e, consequentemente, aquilo a que Michael Doyle se refere como a zona de paz liberal, uma actualização da teoria da paz democrática derivada da ideia de paz perpétua de Kant [20], iniciada no séc. XVIII e actualmente composta por cerca de 100 países [21]. É um erro considerar a democracia liberal como um dado adquirido e imutável. Aliás, Huntington alertou para isto mesmo ao evidenciar que às primeiras duas ondas de democratização seguiram-se ondas reversas, que levaram à transformação de regimes democráticos em regimes autoritários e/ou totalitários. Mas, frequentemente, é também um erro as instituições e políticos demo-liberais procurarem ostracizar os populistas, pois apesar das incorretas soluções que propõem e que passam, em larga medida, pela subversão da democracia liberal, as suas críticas e questões são muitas vezes pertinentes. Conforme Mudde e Kaltwasser [22] e Müller [23] sublinham, é necessário debater com os populistas, devendo este diálogo ter como objectivos compreender melhor as reivindicações e as queixas “das elites e das massas populistas e procurar dar respostas democráticas liberais para elas” [24], o que pode ser “útil ao tornar claro que partes da população realmente não estão representadas”, pelo que “o populismo deveria, então, forçar os defensores da democracia liberal a pensar mais a sério em quais poderão ser as actuais falhas de representação” [25].

Isto leva-nos a outro ponto salientado por estes autores: a União Europeia, com a sua estrutural desconfiança da soberania popular, é particularmente permeável ao populismo, a “políticos que falem em nome do povo como um todo contra um sistema que parece concebido para minimizar a participação popular” [26]. Sendo o défice democrático, como Roger Scruton assinala, uma característica intrínseca do funcionamento das instituições europeias [27], “não admira, portanto, que o défice democrático se tenha tornado quase sinónimo de União Europeia e os populistas sejam cada vez mais eurocéticos” [28].

Neste cenário, torna-se evidente que a Alemanha tem um papel fulcral a desempenhar na superação da miríade de problemas e crises que assolam a União Europeia. Num artigo publicado em 2014 [29], colocámos em perspetiva as possíveis implicações da crise do euro na futura arquitetura político-institucional da União Europeia, tendo, para este efeito, formulado o que designámos por trilema do futuro da União Europeia. As três opções com que a União Europeia, na nossa visão, se defronta são a manutenção do statu quo, a cisão da Zona Euro ou completar a união monetária com uma união política por via do federalismo. Não analisaremos nesta sede as três opções em detalhe, limitando-nos apenas a salientar que se já então a estratégia de hesitação de Merkel era perigosa, pior se torna em face da multiplicação e diversificação qualitativa dos problemas e crises. A cisão da Zona Euro em duas ou mais Zonas Monetárias Óptimas, ou o fim do euro, colocaria ainda mais problemas à União Europeia e lançaria ondas de choque com efeitos imprevisíveis por todo o sistema internacional. E se a crise do euro parece, por ora, controlada, mais importante se torna salientar que o programa de quantitative easing do Banco Central Europeu não atua sobre as fragilidades estruturais da União Económica e Monetária, pelo que, conforme Paul De Grauwe sublinha, sem uma união política, a união monetária permanecerá uma construção frágil, colocando todo o processo em risco [30]. Esta ideia remete-nos, naturalmente, para a opção pelo federalismo, destinada a encontrar forte resistência. A este propósito, recuperamos o que então escrevemos:

Os anti-federalistas acreditam que uma Europa federal significa uma redução da democracia e autonomia nacionais. A verdade é que os países da Zona Euro já abdicaram de significativos instrumentos de soberania, desde logo a moeda, o que implica também a abdicação de um maior grau de liberdade, independência e democracia ao nível nacional. (…) Opor resistência a uma solução federal com base na ideia de preservar algo que já só se possui num grau muito reduzido – autonomia, independência, democracia e liberdade – e que vai sofrendo limitações, condicionamentos e intrusões crescentes por parte de terceiros, mas que, através de um federalismo construído de baixo para cima, assente em múltiplos níveis de governação, na separação de poderes, no sistema de ‘checks and balances’ e no princípio da subsidiariedade, poderá ser restaurado, é, manifestamente, uma posição ilógica, muito frágil e pouco informada [31].

A opção pelo federalismo permitiria resolver as deficiências da União Económica e Monetária e seria particularmente relevante para a projeção da União Europeia no sistema internacional, especialmente no que diz respeito às relações com os EUA, China e Rússia. Mas independentemente da decisão relativamente a esta opção que, pela sua magnitude e complexidade, cremos estar ainda bastante distante, importa reter que a Alemanha é atualmente o líder hegemónico da União Europeia, sendo tão vantajoso para os alemães manter a União Europeia coesa como para os restantes países, que individualmente considerados perderiam a relevância que detêm enquanto membros da União Europeia. Em face das tendências populistas e autoritárias que ameaçam as democracias liberais e a União Europeia, urge que a Alemanha assuma uma posição de defesa mais pronunciada do projeto de integração europeia e da zona de paz liberal. 

A este respeito, é importante realçar que as democracias liberais têm por vezes negligenciado a necessidade de preservar a zona de paz liberal através do apoio aos estados que desta fazem parte, de forma a impedir que forças políticas não-democráticas modifiquem os seus regimes políticos. Um exemplo paradigmático, com as nefastas consequências que se conhecem, é o da falta de apoio económico à Alemanha na década de 1920. Doyle considera que as democracias liberais devem adoptar uma estratégia assente na preservação e expansão da zona de paz liberal, devendo a preservação ser a sua principal preocupação. Esta passa pelo estabelecimento de alianças entre democracias liberais, a defesa contra ameaças, ataques externos ou subversões internas, o reforço do multilateralismo, o fortalecimento da segurança colectiva das democracias liberais e a atenuação de consequências negativas da globalização e do funcionamento da economia de mercado [32].

A manutenção da estratégia de Merkel só poderá agravar os problemas e crises que grassam na Europa. As crises, como tem sido hábito ao longo das últimas décadas, devem ser aproveitadas para transformar a União Europeia, o que já acontecerá, de qualquer das formas, em consequência do “Brexit”, cujos moldes e reais consequências são ainda desconhecidos.

É em face deste complexo cenário que importa debater a política externa portuguesa. Conforme salienta Tiago Moreira de Sá, colocam-se-nos três opções em face da hegemonia alemã: o alinhamento com a Alemanha, que é a posição mais provável; desenvolver alianças que contrabalancem o poderio alemão (com a saída do Reino Unido, tradicional equilibrador do poder das potências continentais, e uma França à procura de revitalizar o eixo franco-alemão, não parece plausível); ou fomentar alianças fora do quadro europeu que pudessem ser uma alternativa à opção europeia [33]. A propósito desta terceira opção, que se encontra na base do desenvolvimento das relações no quadro da CPLP, e que por vezes é defendida com algum vigor no reduzido debate público sobre a política externa portuguesa, subscrevemos na íntegra a posição de Tiago Moreira de Sá:

Pensar-se que Portugal poderia hoje, como em tempos, voltar a uma posição de quase isolamento relativamente aos assuntos europeus é pensar-se num mundo que não existe e que só fazia eventualmente sentido num passado em que havia o Império e em que a integração ocidental, e especialmente a europeia, ainda se encontrava longe dos níveis atuais. A lusofonia não tem, nem de longe nem de perto, a dimensão do mercado europeu, nem mesmo no que se refere à dimensão das trocas comerciais com o nosso país. Portugal é hoje parte do euro e a sua economia está integrada no mercado comum da União Europeia, encontrando-se aí todas as suas prioridades. Deve ser o seu esforço principal a manutenção da Zona Euro, e consequentemente da UE, e a sua permanência no seio de ambas. O fim da integração europeia, independentemente de esta se encaminhar para novos aprofundamentos ou permanecer estagnada, teria consequências dramáticas para o país. Assim, quaisquer alinhamentos extra-europeus, podendo ser vistos como mecanismos compensatórios, jamais se poderão constituir como verdadeiras alternativas à UE [34].

Portugal deve, naturalmente, continuar a atuar nos eixos atlântico e lusófono da sua política externa, mas o eixo europeu tem uma maior importância para o país e é nele que devem ser concentrados mais recursos. Devemos salientar, no entanto, que o alinhamento com a Alemanha, segundo Tiago Moreira de Sá, não deve ser absoluto e seguidista. Portugal deve, na medida das suas possibilidades e tendo em consideração a boa relação com a Alemanha, procurar influenciar o processo decisório alemão, o que exige “uma estratégia bem definida, com objectivos claramente estabelecidos e com um plano de ação com as devidas medidas de flexibilidade e constância” [35]. 

Esta estratégia deve ter em consideração os grandes desafios que a União Europeia enfrenta e procurar fomentar a articulação com os restantes Estados-membros. Bernardo Pires de Lima esboça três objetivos que poderão presidir a esta estratégia: “O primeiro passa por sublinhar os custos de desagregação do euro e da UE, ao mesmo tempo que reforça a mensagem benigna que deve permanecer associada a uma UE agregada, coesa e democrática. (…). O segundo, passa por implementar um roteiro que reforce a legitimidade das instituições políticas e financeiras da UE de forma a responder ao tremendo desafio da adequação de muitas medidas impopulares e da necessidade de maior convergência orçamental e económica, quer na Zona Euro quer fora dela. (…). Em terceiro, Lisboa precisa de levar o debate estratégico até Bruxelas. Até pela sua posição geoestratégica, a sua linha argumentativa tem outra propriedade”, e considerando os desafios colocados pela Rússia que procura interferir ilegitimamente em diversos países, pelo crescente interesse dos EUA no Pacífico e por países situados no norte de África e Médio Oriente desestabilizados pela Primavera Árabe, “se a UE permanecer desprovida de pensar estrategicamente a política e a segurança internacionais, estará a cavar não só a sua insegurança como a sua dispensabilidade na resolução das grandes crises que a rodeiam”.

Tendo sido nosso objetivo estimular o debate em torno da política externa portuguesa, não sendo, porém, nosso intuito dar respostas definitivas, que não temos, certo é que o turbulento ambiente internacional com que Portugal e a União Europeia se deparam atualmente caracteriza-se pela existência de ameaças cujo potencial desenvolvimento coloca em risco regimes demo-liberais, a zona de paz liberal e o projeto de integração europeia. Dentro dos limitados recursos de que o nosso país dispõe – condicionante presente na política externa portuguesa desde a fundação de Portugal – devemos procurar contribuir para superar crises que ameaçam a nossa segurança, cultura política e modo de vida.

 

[1] Tiago Moreira de Sá, Política Externa Portuguesa (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015), 37.

[2] Samuel P. Huntington, The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century (Norman: University of Oklahoma Press, 1993), 3.

[3] Sá, Política Externa Portuguesa, 55.

[4] Ibid., 12.

[5] Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man (New York: The Free Press, 1992).

[6] John Gray, A Morte da Utopia (Lisboa: Guerra e Paz, 2008), 105.

[7] Robert Gilpin, Global Political Economy (Princeton: Princeton University Press, 2001), 5–8.

[8] Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser, Populismo: Uma Brevíssima Introdução (Lisboa: Gradiva, 2017), 18.

[9] Ibid., 19–20.

[10] Ibid., 22–32.

[11] Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, 5.a ed. (Mem Martins: Publicações Europa-América, 2003), 35.

[12] Isaiah Berlin, Rousseau e Outros Cinco Inimigos Da Liberdade (Lisboa: Gradiva, 2005), 69.

[13] Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy (New York: Harper Perennial, 2008), 250–68.

[14] Mudde e Kaltwasser, Populismo: Uma Brevíssima Introdução, 30–31.

[15] Robert A. Dahl, Democracy and Its Critics (New Haven: Yale University Press, 1991).

[16] Mudde e Kaltwasser, Populismo: Uma Brevíssima Introdução, 31–32.

[17] Jan-Werner Müller, O Que é o Populismo? (Alfragide: Texto, 2017), 19–20.

[18] Ulrich Beck, A Europa Alemã: De Maquiavel a «Merkievel»: Estratégias de Poder na Crise do Euro (Lisboa: Edições 70, 2013), 70.

[19] Ibid., 65.

[20] Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos (Lisboa: Edições 70, 2009).

[21] Steve Smith, Amelia Hadfield, e Tim Dunne, eds., Foreign Policy: Theories, Actors, Cases, 3.a ed. (Oxford: Oxford University Press, 2016), 56–59.

[22] Mudde e Kaltwasser, Populismo: Uma Brevíssima Introdução, 142.

[23] Müller, O Que é o Populismo?, 113.

[24] Mudde e Kaltwasser, Populismo: Uma Brevíssima Introdução, 142.

[25] Müller, O Que é o Populismo?, 113.

[26] Ibid., 106–7.

[27] Roger Scruton, As Vantagens do Pessimismo (Lisboa: Quetzal, 2011), 120–21.

[28] Mudde e Kaltwasser, Populismo: Uma Brevíssima Introdução, 142.

[29] Samuel de Paiva Pires, «A crise do euro e o trilema do futuro da União Europeia», Revista Portuguesa de Ciência Política, n. 4 (2014): 33–55.

[30] Paul De Grauwe, Economics of Monetary Union, 9.a ed. (Oxford: Oxford University Press, 2012), 132.

[31] Pires, «A crise do euro e o trilema do futuro da União Europeia», 49–51.

[32] Smith, Hadfield, e Dunne, Foreign Policy: Theories, Actors, Cases, 72–73.

[33] Sá, Política Externa Portuguesa, 67.

[34] Ibid., 67–68.

[35] Ibid., 74.

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