«O Homo consumens é o homem cujo principal e primeiro objectivo não é possuir coisas, mas consumir cada vez mais, e assim compensar a sua vacuidade interior, passividade, solidão e ansiedade… Ele confunde emoção e excitação com alegria e felicidade, conforto material com vitalidade; a satisfação da cobiça torna-se o sentido da vida, e lutar por ela uma nova religião. A liberdade de consumir torna-se a essência da liberdade humana.»[1]

Esta passagem de Erich Fromm é frequentemente citada, pelo valor inaugural com que dá conta de uma nova condição humana. A mudança envolvida no Homo consumens é a de um sujeito que consome mais e mais, a experiência de consumo ocupando cada vez mais o campo e a diversidade da sua experiência. Mas é também a mudança do próprio sujeito de experiência, na maneira como vai sendo socialmente configurado num sentido em que nenhum outro tipo de experiência além da de consumo continue a ser possível. Podemos criticar e bem as escolhas consumistas, mas também nada mais resta a escolher. Interpretar estas duas mudanças, mesmo para lá da passagem citada de Erich Fromm, é indispensável para colocar o pensamento ecológico em bases capazes de uma resposta realmente transformadora.

‘Homo reservatorius’: do consumo da escassez acumulada

Sem dúvida, consumir é gastar alguma coisa. Contudo, o problema está menos em consumir, mesmo se muito, mas nos pressupostos em que assenta a própria possibilidade do consumo: para gastar algo será preciso, primeiro, possuir? No Homo consumens sim: gasta-se um reservatório, um saldo bancário, recursos de que alguém reclama a propriedade, esta concebida justamente como reservatório de valor que pode ser gasto. Até um banco de tempo, pese embora o seu valor emancipatório, está comprometido com este condicionamento do consumo pela posse. A própria desigualdade de rendimento é expressão de uma desigualdade de reservatórios acumulados, o que só os torna mais valiosos aos olhos de quem não os tem. A concepção do Homo consumens não é separável, perdoe-se o latinório à René Goscinny, de um certo Homo reservatorius – consome-se o que, primeiro, se tomou por escasso e, por isso, se acumulou.

A pergunta a fazer é então: e se a experiência de consumo fosse libertada desse condicionamento pela posse da escassez? Mais do que no facto bruto do consumo, o problema está no significado do consumo definido nos estreitos limites de gasto do que se tem acumulado porque é escasso. Só desta maneira redutora, o desperdício se torna a irracionalidade que tem de ser suplantada por poupança e ganhos de eficiência.

Preferir a abundância rara à acumulação da escassez

Uma ecologia consequente deveria libertar o seu discurso deste imaginário da escassez, que envida esforços em nada desperdiçar, tanto quanto esforços de tudo acumular, afinal dois lados da mesma moeda da racionalidade da eficiência. Este é o elefante na sala de que tem de se falar. Embora possa parecer contrário ao capitalismo, o pensamento ecológico alimentar este imaginário é manter-se dentro da racionalidade económica que leva da escassez à acumulação e desta à desigualdade. A sustentabilidade de que tanto se fala é a nata da eficiência. Por isso, não haverá realmente ecologia ambiental se não for também uma ecologia social que faça a crítica do consumo baseado na escassez e dos seus paradoxos.

Por exemplo, o produto decantado perseguido pelo capitalismo não é a abundância, mas o seu exacto oposto: a maior acumulação possível do escasso, ou seja, o prodígio de ter imensamente o pouco e desprezar o abundante, tomado como não-valor enquanto não se tornar escasso. Inquietantemente, o que convém ao capitalismo é nada escapar à condição de escassez. Fazer de tudo o que existe, sob alguma perspectiva, um recurso e, em seguida, encontrar a forma de o perceber como escasso – isso será produzir valor.

Sob estas premissas, segue-se a gestão da escassez racionalmente avessa ao esbanjamento, à ineficiência, ao desperdício em que é farta a natureza. E ironicamente, as relações vivas na cultura e no convívio seguem a lógica da natureza – da abundância rara – e não da eficiência que acumula o escasso. A ironia está em se dar demasiado crédito à oposição entre natureza e cultura quando ambas só se compreendem como domínios da abundância rara e que, por isso, deve ser atentamente cuidada. A festa do encontro das pessoas, o festival cultural e o lazer improdutivo não dizem nada à gramática dos recursos ao serviço da multiplicação do escasso.

Contudo, parece o contrário. O capitalismo compele ao consumismo e dir-se-ia que o consumismo é da ordem do excesso. Simplesmente, bem observado, o que se verifica é que consumimos excessivamente porque o sistema económico faz desse excesso necessidade. O referente da eficiência é o sistema económico no seu conjunto e não os indivíduos. O que chamamos individualismo descapacita os indivíduos, ao contrário do que a designação sugere. Somos compelidos a consumir e a desejar consumir porque essa é a nossa utilidade para a eficiência do sistema económico. É ele quem poupa e gere a sua escassez. Se acumulamos necessidades artificiais, se nos tornamos sociedades de obesos, tudo isso, a tralha que compramos, a obesidade que nos fica e a ansiedade por mais e mais que não sai são o dano colateral, como outras formas a juntar ao muito lixo gerado.

Também é verdade que se diz que precisamos que o sistema económico sobreviva para nele podermos sobreviver, como se ele ainda fosse o nosso meio e não o contrário. Mas será isso verdade? Ou será uma chantagem inaceitável que nos leva a sacrificar o ambiente na escala de prioridades que tem acima as pessoas e, acima destas, o sistema económico? Temos de dissociar o destino da humanidade do destino de um sistema económico que, em última análise, compromete aquele ao varrer todo o planeta com a insustentabilidade.

A crítica à moral da escassez

À luz deste opressivo condicionamento pela racionalidade da eficiência, é a alegria em desperdiçar que ganha um significado de resistência, até vital, e de alternativa. O paradoxo da escassez de recursos revela-se quando podemos não beber a água de uma chuva que se abate inesperada, vê-la desperdiçar-se e não sentirmos culpa.

Aliás, esta culpa e a suas relações com a acumulação e o capitalismo foram muito bem aclaradas num célebre ensaio de Max Weber:   o gozo da abundância é luxúria, a acumulação ilimitada do escasso é ganhar o céu em virtude (“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”). Portanto, não haverá realmente ecologia se não se libertar da mesma moral da escassez que motiva a racionalidade da acumulação. Consumo ético, consumo responsável, consumo consciente, consumo verde são exemplos deste equívoco. É preciso escavar fundo, para reencontrar, de consciência tranquila, o valor da festa e da abundância.

Talvez fosse preferível falar de crítica da cultura de consumo, que não é uma crítica a todo o consumo. Paradoxalmente, a ecologia deve libertar o consumo da opressão da acumulação da escassez e do consumismo. Tem de haver outras formas de consumir, libertas dessa opressão. Não se trata de consumir o que não se tem, seja roubado ou reclamado por uma injusta apropriação à Robin Hood. O próprio valor da igualdade está colonizado pela racionalidade do reservatório do escasso. Mesmo o desejo justo da mobilidade social não sai deste horizonte estreito, se o que a determina é uns subirem o que outros descem. É preferível, sem dúvida, a mobilidade à imobilidade social, mas, visto de fora, é o mesmo beco sem saída, o mesmo labirinto do minotauro, regulado pelo valor da escassez.

A ruptura ecológica estará em deixar de consumir sob um regime de escassez. Abdicar desse consumo e limitarmo-nos ao da abundância. Como beber a água da chuva que apetecer, ou comer a fruta que se não for comida apodrecerá, comer da abundância e não da escassez, como é, por exemplo, a arrogância de querer ter tudo à mão na prateleira do supermercado, todas as escassezes disponíveis, que é a perversão da abundância. O que vale para a alimentação, vale para tudo o mais, a energia dos rios, do sol, do mar. A lógica da escassez tem de ser suplantada pela racionalidade da abundância, tanto no consumo como na produção.

Parar de consumir o escasso implica interromper a organização do mundo como escassez. Há uns anos escrevi nesta mesma rubrica: “Pensar ecologicamente a economia exige que se passe do paradigma da escassez para o da abundância, o que requer passar de uma conceção de natureza como bem privado, limitado, alvo de competição, para uma conceção de natureza como bem comum e público, partilhado.”

Na verdade, há como que um fetiche em torno da escassez que faz com que nada possa ter valor a não ser que seja escasso, o que acaba por converter tudo o que tem valor em figurações pretensas do escasso. Ora, isto é profundamente redutor. E tal como a economia, também a justiça social, a própria teoria política, tem de ser mais do que apenas um outro domínio da escassez.

A pergunta de Roland Barthes – “como viver juntos?” – não pode ter resposta satisfatória se se ficar pela administração eficiente da escassez dos benefícios que uma sociedade tem para dar. Portanto, não se trata de deixar de pensar o social pela lente da economia, mas passar a pensar ambos, o social e o económico, pela lente do ecológico. O próprio pensamento – a maneira como pensamos todos os assuntos, mesmo moralmente – tem de libertar-se dessa racionalidade da eficiente gestão da escassez e virar-se ecologicamente para a abundância.

Ser além do ‘Homo Consumens’

Além do condicionamento da experiência do consumo reduzida a consumo da escassez que se acumulou, há a questão das outras experiências. Num importante ensaio sobre as transformações do tempo, E. P. Thompson[2] falava de uma subtil mudança na maneira como nos relacionamos com o tempo – em vez de passarmos tempo, gastamos tempo. Mas, o tempo que passamos juntos não tem de ser concebido como tempo gasto.

A atenção dedicada a alguma coisa não tem de ser pensada como atenção gasta de um reservatório com limites. O tempo que passamos juntos, a atenção que nos damos uns aos outros, mas também às coisas, estar com as coisas e fazer coisas juntos, sermos activos à roda de um projeto, beneficiar da companhia, até da amizade, tem de poder ser pensado para lá de toda a utilidade. É claro que gastamos tempo quando passamos tempo, mas o tempo que passamos é único, é vivido, muito mais do que consumido. Não é tempo perdido, mas ganho. E do mesmo modo, a atenção e a disponibilidade com que nos envolvemos em fazer algo com sentido são muito mais do que consumidas. Tudo pode ser pensado pela lente do consumo, essa é a sua vantagem, mas a experiência de consumo sem outra, que lhe confira sentido, não é vida ganha, mas perdida.

Em suma, é preciso revolucionar criticamente as representações que fazem da escassez um fetiche estruturante de todas as nossas relações com o mundo. A escassez nem é, por si mesma, dotada de valor, nem deve ser socialmente promovida. Pelo contrário, deve ser excluída das práticas de criação de valor. Algo ser percebido como escasso deve constituir uma razão ecológica poderosa para que saia das nossas contas, figurada e literalmente, e das nossas contas ambientais, económicas, sociais, políticas. Abdicar da escassez e restabelecer uma relação baseada na inteligência da abundância – só por aqui poderemos salvar o destino humano e e do planeta. Desatá-lo do destino de um sistema destrutivo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

[1] Tradução minha de Erich Fromm. “The Application of Humanist Psychoanalysis to Marx’s Theory” in Socialist Humanism: An International Symposium. New York: Doubleday, 1965.

[2] Thompson, E. P. (1967) ‘Time, Work-discipline, and Industrial Capitalism’, Past & Present, No. 38: 56-97.