Em meados dos anos 40 do século passado, o sociólogo Herbert Marcuse escreveu um artigo muito interessante sobre as implicações sociais da tecnologia moderna. Segundo o autor, a generalização do uso da tecnologia nos mais diversos setores da economia e da sociedade determinou a constituição de um aparato que domina a vida das empresas e das instituições modernas. O autor fala-nos da emergência de uma racionalidade técnica (ou tecnológica) que vai tomando conta de tudo e de todos a partir do princípio de competitividade e de eficiência orientada para a máxima produtividade. Uma racionalidade de cariz instrumental assente em múltiplos procedimentos burocráticos e administrativos que nos impele a agir em conformidade com os regulamentos, os formulários, as metas e os objetivos a atingir. Generaliza-se assim uma parafernália de rankings e de índices de avaliação que pretendem medir a capacidade produtiva dos indivíduos nas mais diferentes atividades profissionais.

Segundo Marcuse, embora a noção de individualidade não desapareça, esta passa a estar dependente e condicionada por ‘standards’ de eficiência que são externos ao próprio indivíduo. Na verdade, a racionalidade técnica impõe-se à custa da erosão do exercício de uma racionalidade crítica e irreverente, orientada por fatores de emancipação e de autonomia individual. Ou seja, o comportamento racional vai-se progressivamente submetendo e, em certo sentido, moldando ao aparato tecnológico, e ao fazê-lo conforma-se à ordem social prevalecente. O autor desenvolveu esta ideia numa obra posterior, publicada em 1964, com o sugestivo título de O Homem Unidimensional, onde é aprofundada a noção de administração total, segundo a qual a organização de base tecnológica tende a deter um caráter quase totalitário de amplo controlo social. Ou seja, a racionalidade técnica alastra e erradia pelos vários domínios da vida social tanto na esfera profissional como na esfera privada e até afetiva.

Os referidos textos, apesar de terem sido escritos antes da revolução tecnológica e comunicacional que se alicerçou a partir do último quartil do século XX, denotam uma perspicácia cujos paradoxos se mantêm vigentes nos dias de hoje. Um desses paradoxos é identificado pelo próprio autor ao referir que as sociedades industriais avançadas não estão organizadas e orientadas para a satisfação das necessidades vitais e verdadeiras dos indivíduos, que promovam a sua autonomia, mas que, em contrapartida, se orientam para as necessidades consideradas ‘falsas’ que constrangem e, de certa forma, reprimem as vontades e desejos de emancipação.

Estas e outras análises e reflexões críticas, de autores como Marcuse, deverão ser retomadas no contexto dos presentes desafios tecnológicos e na relação que estes estão e vão estabelecer entre, por um lado, a maximização da produtividade e, por outro, a crescente precarização do trabalho e das relações laborais. Na verdade, o autor ensina-nos a olhar para a tecnologia como algo que não deve ser tratado como uma estrutura neutral meramente externa à sociedade. Pelo contrário, a grande capacidade da tecnologia moderna deriva precisamente dessa aptidão de se constituir como força externa que, por via dos poderes e das dinâmicas instituídas, se internaliza na vida económica e social dos indivíduos. É assim que esta se torna preponderante e capaz de moldar as formas de agir e de pensar de caráter unidimensional. A existência comum reduz-se assim à única dimensão da eficiência e da produtividade. Por este motivo, a análise dos impactos da tecnologia não pode ser desligada do estudo sobre os modos modernos de organização, de gestão e de exploração do trabalho.

Por sua vez, a tecnologia também não pode ser vista como algo intrinsecamente negativo e prejudicial às sociedades. Como refere e bem Marcuse, o progresso tecnológico permitirá um decréscimo relevante no tempo despendido em tarefas rotineiras que assegurem as necessidades básicas da vida. Este facto não deve ser concretizado em favor de novas formas de exploração do trabalho e de controlo individual e coletivo. Em alternativa, a tecnologia deve ser produzida como um meio, um pressuposto, que vise retomar a possibilidade de uma existência multidimensional pautada pelo uso do tempo de qualidade. Ou, dito de outro modo, um tempo preenchido pelo trabalho de qualidade que alie a realização pessoal ao retorno para a comunidade e para o bem comum. Este será, sem dúvida, um dos grandes desafios políticos e utópicos do nosso tempo.