Já muito foi escrito sobre a proposta de Orçamento do Estado (OE). Do lado da esquerda tem sido salientado a coerência da política orçamental e a sua função reparadora que, na continuidade dos dois orçamentos anteriores, repõe um conjunto de direitos e de rendimentos que foram retirados ou reduzidos durante os anos da Troika e do programa de ajustamento. É também referido o aprofundamento da política redistributiva que associa a progressividade fiscal a uma maior calibração das políticas sociais, com destaque para a atualização do Indexante dos Apoios Sociais (IAS). Trata-se de um orçamento que entre outros objetivos pretende diminuir de forma sustentada o nível de desigualdades sociais e económicas que se mantêm num patamar elevado.

Do lado da direita, os comentadores e políticos desdobram-se em adjetivos contraditórios apelidando a proposta de OE tanto de eleitoralista e expansionista, como de pouco ambiciosa ou irrealista. O objetivo principal é o de desvalorizar os resultados económicos alcançados pelo atual Governo, referindo que estes foram em parte determinados pela sorte da conjuntura. Enterrada a crença no diabo, agora a fé direciona-se para o acaso e a sorte do contexto. Quando será que a direita deixa cair os feitiços para a interpretação do que não encaixa na sua narrativa limitada e perceba, de uma vez por todas, que as alternativas resultam de construções políticas assentes em visões concretas, embora nem sempre convergentes, sobre os rumos que o país deve seguir? É esse o traço basilar da designada ‘geringonça’: a capacidade de gerar um espaço negociação a partir da ação e da racionalidade política. E como Portugal estava tão necessitado de novos espaços de racionalidade política…

Por isso se torna tão importante aprofundar e replicar estes espaços de confronto e negociação assentes em processos de ação racional e comunicacional, no sentido explorado por Jürgen Habermas, nas mais variadas esferas que compõem os sistemas e as instituições políticas: não só nos órgãos centrais do sistema democrático, mas também na administração pública, nas universidades, nas escolas, nos hospitais, nas autarquias, etc. A institucionalização destes espaços significa repor a ação política no centro da vida democrática, atribuindo-lhe o máximo de visibilidade e de exposição pública. Precisamos de uma política para o comum, para a vida de todos os dias, capaz de se desamarrar dos bastidores da política dos interesses que, por sua vez, se encontra confinada às restritas (e, por vezes, tenebrosas) elites de sempre.

Para tal, as alternativas deverão ultrapassar o âmbito do orçamento dando o salto qualitativo para um programa estratégico que seja determinado pela ambição de construir o futuro. Um programa que resulte de um intenso debate entre racionalidades políticas orientadas para a ação e não somente para a reflexão ou para a mera manifestação de intenções. A este respeito, salientaria – de maneira muito telegráfica e correndo o risco de ser demasiado simplista – quatro eixos principais que poderiam basilar as suas áreas de intervenção:

a) Uma política para os territórios – Portugal vive um crescente desequilíbrio territorial que necessita urgentemente de ser rebalanceado. A recorrente e brutal tragédia dos incêndios florestais revelou, entre outras calamidades e carências, aquilo que há muito tem sido ressaltado por vários especialistas, a saber: que é fundamental concretizar uma política estrutural que alie o ordenamento territorial e a gestão dos recursos florestais e ambientais a uma efetiva e eficiente reconfiguração da descentralização político-administrativa do país. De outro modo, dificilmente conseguiremos romper o ciclo depressivo no qual se encontra a maior parte dos espaços rurais ou periurbanos.

b) Uma política para os serviços públicos – nos anos da austeridade delapidaram-se até ao limite os recursos humanos e organizacionais dos diversos sistemas e serviços públicos. Vive-se esta realidade nas escolas, nos hospitais, nos tribunais, nas universidades e institutos politécnicos… Torna-se, por isso, importante não só reverter as tendências anteriores, designadamente repondo a amplitude e a cobertura das redes de serviços, como apostar numa efetiva e sustentável renovação de quadros qualificados disponíveis para dedicar a sua vida profissional à coisa pública.

c) Uma política para as gerações mais novas – os jovens, particularmente os jovens adultos, foram dos grupos mais afetados pelo aumento da emigração, do desemprego e da precarização laboral, mas também pela pressão da especulação imobiliária nas maiores cidades decorrente da bolha turística e que os arreda progressivamente do direito à habitação e de viver condignamente na cidade. Para muitos o futuro tornou-se uma insuportável incerteza. É hora de implementar uma política real direcionada para estes grupos e que rompa com o recurso sistemático (e fácil) aos estágios profissionais ou à retórica habitual do empreendedorismo.

d) Uma política para a democracia – o nosso país não pode continuar a viver num regime político que se revela incapaz de se autoproteger da promiscuidade entre o interesse privado e o interesse público. O regime precisa de se blindar das recorrentes investidas de grupos ou indivíduos que pretendem usurpar o bem comum apropriando-se da coisa pública para proveito próprio. Não é aceitável continuar-se a alimentar esta penumbra geral de desconfiança face aos agentes políticos. Isto corrói a democracia e os direitos mais básicos de justiça. Precisamos, por este motivo, de arenas de disputa de ação racional que se alicercem na promoção do interesse geral.