O combate à pandemia tem gerado um sem fim de ideias. Umas boas, outras más. Quando todos julgávamos que já tínhamos tido a nossa conta de ideias más – como a “stayaway covid” ou manter os idosos confinados sine die –, eis que surge esta do passaporte sanitário.

Num dia dizia-se que era urgente discutir o assunto e no dia seguinte a decisão parece estar tomada. Segundo se ouve de Bruxelas, falta decidir o nome a dar à coisa – “certificado de vacinação” parece mais suave –, bem como a informação que deve conter. Só o registo de que a pessoa foi vacinada ou outros dados sobre o seu estado de saúde?

Tal como falta determinar para que serve ao certo. Só para viajar ou também para aceder a outras vantagens? Só viagens entre países da UE, de e para a UE, ou igualmente dentro de cada país? E podemos utilizar o dito passaporte para aceder a edifícios públicos, eventos desportivos e culturais, hotéis, ginásios e restaurantes?

Não são propriamente minudências, mas a proposta legislativa vai sair em março e deve ser implementada até ao verão. O grande desígnio estratégico é, portanto, o turismo.

É importante dizer que este passaporte sanitário não é igual ao nosso velho boletim de vacinas – e à necessidade de ter as vacinas em dia para certos fins –, dado que as “picas” carimbadas nesse caderninho de papel amarelo e azul são de acesso universal. Infelizmente, não é o que sucede ainda – e continuará a não a suceder por muitos e bons meses – com as vacinas contra a Covid-19. Se houvesse para todos, não havia fura-filas. Faz toda a diferença.

Por isso, o dito passaporte discrimina os cidadãos em função da sua condição de saúde. Divide os cidadãos em duas categorias – criando dois estatutos jurídicos diferentes –, com base num critério que (não sendo arbitrário, se a ordem da vacinação o não for) é alheio à vontade e à conduta das pessoas. Pior do que isso, penaliza duplamente aqueles que ainda não tiveram acesso à vacina: além do risco de saúde que correm, por exemplo para irem trabalhar todos os dias – sim, nem todos podem estar em teletrabalho! –, ficam ainda privados de um direito básico, como a liberdade de circulação (assim reservada aos “maiores e vacinados”).

Tem-se dito que o objetivo é também incentivar as pessoas a vacinar-se. Acontece que as pessoas não precisam assim tanto de ser incentivadas. Precisam é de paciência para esperar. E se, no final do processo, ficarem alguns negacionistas de fora, o problema vai ser para eles. A imunidade de grupo não precisará da sua boa vontade e as doses que lhes estariam destinadas podem, com proveito, ser reencaminhadas para países ondem fazem falta. Aliás, ou bem que a vacina é obrigatória ou bem que não é.

De resto, a vacina contra a Covid-19 protege as pessoas contra a doença (ou as formas mais severas da doença), mas não as impede de apanhar o vírus e até, porventura, de o transmitir. E, como sublinha a OMS, há ainda muitas dúvidas sobre a eficácia das vacinas, em particular sobre a duração dos seus efeitos e sobre o nível de proteção contra as variantes. Por isso, os vacinados devem continuar a proteger-se com máscara, manter distanciamento social e afins.

Neste sentido, o passaporte sanitário, ao dar ordem de soltura aos vacinados passa a pior das mensagens: liberta uma população que, embora vacinada, não deixa de ser frágil e de constituir algum risco para terceiros, ao mesmo tempo que dá a todos uma sensação de falsa segurança.

Em matéria de passaporte sanitário há, portanto, um antes e um depois. Antes de todos estarem vacinados, a ideia é discriminatória e perigosa. Depois de todos estarem vacinados, não serve para nada.