Decidi chamar “Património à solta” ao livro publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos por várias razões. Em primeiro lugar, porque ele reúne notas e histórias soltas que considerei pertinentes para oferecer uma panorâmica evolutiva do que hoje se entende, em contexto euroamericano, por património cultural. Em segundo lugar porque o património cultural é uma matéria – que pode ser imaterial – volátil e plástica, além de ser, na essência, o recurso mais democrático de todos: mesmo quando não temos nada, temos sempre cultura, a matéria-prima do património. Por fim, porque hoje em dia o património, enquanto recurso, segue as dinâmicas abertas e fluidas do capitalismo global, estando literalmente “à solta”.

O valor do património

Isso do Património (cultural) pode parecer uma coisa antiga, sem valor prático ou distante das mais-valias das economias globais contemporâneas, como inovação e geração de riqueza. Mas não. O termo é recente, embora vá buscar as suas raízes linguísticas ao direito romano, e com isso traga toda uma carga genealógica, legal e, também masculina. Ele ganhou forma e relevância em momentos de perda, destruição ou expropriação, como na Revolução Francesa, nas guerras do século XX e, mais recentemente, com a hipercirculação desenfreada de objetos, memórias e experiências.

Inicialmente, o património foi usado, sobretudo no século XIX, como ferramenta para mapear territórios nacionais, regionais e coloniais. Com o surgimento de um regime global do património, liderado por organizações como a UNESCO, o conceito passou a exaltar ideais de universalismo e transnacionalismo, alegadamente para contrariar os excessos nacionalistas da primeira metade do século XX. A emblemática e milionária campanha e encenação da UNESCO para salvar os templos de Abu Simbel da inundação causada pela construção da barragem de Assuão com apoio soviético, por exemplo, simboliza a transição para uma nova era marcada pela combinação entre valores capitalistas e o discurso de preservação cultural.

O valor do património foi, então, numa primeira fase, essencialmente político. Hoje parece ser sobretudo económico, mesmo quando pensamos na sua capacidade de se transformar em arma de arremesso político.  Mesmo acreditando no potencial de empoderamento bottom up de comunidades minoritárias através da promoção do seu património é evidente que se trata de uma forma económica, cómoda, mediática, desculpabilizante e paliativa de reconhecimento político: o reconhecimento cultural é muito menos custoso do que uma efetiva reparação económica e social de desigualdade.

Ao mesmo tempo, o património – material e imaterial – é uma gema de valores identitários altamente inflacionados por uma economia liberal com grande capacidade de coaptação e sua capitalização económica, sobretudo através do turismo. E a mercadorização do património (no seu estrito sentido marxista de transformação em mercadoria, ou como Adorno afirmou para a mercadoria cultural) anula o seu valor político.

Em última análise, numa perspetiva crítica, a corrente sacralização do património dentro de uma lógica capitalista global muitas vezes antecede apenas a alienação ou, pelo menos, a domesticação do seu potencial político. Esta é, talvez, uma das razões porque é muito fácil encetar debates sobre, por exemplo, as repatriações do património – e o espectro político de um certo consenso em relação a estas questões alargou-se nos últimos anos, mesmo em Portugal –, mas muito difícil avançar com medidas de correção das assimetrias sociais estruturais fixadas no contexto de expropriações coloniais ou mesmo regionais: uma espécie de diplomacia patrimonial pouco efetiva.

Acontece que hoje a economia do património, particularmente aquela ligada ao turismo, está determinada por duas tendências conflituantes do mercado. Por um lado, a automatização da comunicação e dos serviços, com vista à (ainda maior) captação de alto volume da procura. E, por outro, por uma nova demanda de experiências – em muitos casos ‘cocriativas’ – por parte dos consumidores que passam, em inglês, a chamar-se prosumers na medida em que exigem um papel ativo na conceção do produto. Estes novos consumidores preferem as ‘experiências’ aos ‘serviços’ e ‘produtos’.

Os economistas já teorizaram esta economia da experiência em que as relações personalizadas parecem ganhar preferência e que abre múltiplas possibilidades para o turismo e, consequentemente para o património. Em Portugal têm sido desenvolvidos casos interessantes desse turismo criativo como ‘alternativas’ a um turismo massificado que, contudo, não o substituem e muitas vezes apenas contribuem para o seu crescimento, diversificando a oferta.

Colocando de parte o pernicioso e persistente impulso economicista acrítico e irresponsável que aposta no crescimento exponencial do turismo, nada disto é mau, se ficarmos todos felizes: ou seja, se as populações locais se reconhecerem e participarem efetivamente nestes processos de maior proximidade e em menor escala em que a fruição do seu património pode ser de fato partilhada, se beneficiarem diretamente das suas receitas, e se os turistas ficarem, também, contentes sem esgotar recursos logísticos e outros aos quais os residentes devem ter prioridade de acesso (para não falar, obviamente, dos recursos naturais).

Património e memórias do futuro

Passemos, seguindo a mesma lógica decrescente, à segunda razão de ser do título, já que a primeira se explica a ela própria. O património cultural é uma matéria – que pode ser imaterial –volátil e plástica, além de ser, na essência, o recurso mais democrático de todos: mesmo quando não temos nada, temos sempre cultura, a matéria bruta do património.

A volatilidade e plasticidade do património decorre do fato deste resultar de uma curadoria presente da cultura avulsa do passado. Esta curadoria faz-se com recurso à memória individual ou coletiva, oral ou escrita, sancionada ou não por métodos científicos e/ou instituições que o tutelam. O que é particular ao património é o fato de os seus detentores humanos ou, pelo menos, os seus curadores se reconhecerem nele de forma mais ou menos consensual em determinado momento. Isto à semelhança do modo como a nossa própria memória individual opera, selecionando do passado momentos diferentes e lembrando coisas e situações de forma distinta de cada vez que as revisitamos.

Por outro lado, o património nem sempre é consensual: se por vezes é congregador, por outras é lugar de disputa e contestação, de afirmação ou imposição.  Tudo isto, em relação ao património cultural, tem sido amplamente discutido, particularmente a partir da queda do muro de Berlim e da emergência e reconhecimento da sociedade civil como agente ativo no mundo global, sobretudo, nos domínios da cultura. Mas ninguém contesta a importância do património.

Olhemos agora para o futuro, cada vez mais presente, voltando à nova economia, à transição digital e à crescente automatização da comunicação e dos serviços. Se é verdade que a digitalização do património pode desempenhar um papel importante na preservação e democratização do património cultural, como e quem vai produzir e gerir as nossas memórias e fazer a necessária curadoria do nosso património no futuro? É um dos modelos de inteligência artificial (desenvolvido pela OpenAI, o chat GPT) que, por enquanto, quando questionado sobre isso, nos alerta para os riscos de colonialismo digital, expropriação e perda de soberania cultural. Mais do que nunca, há que estar atento às questões éticas relativas aos bens e direitos culturais.