“Património Cultural – Realidade Viva” constitui uma reflexão sobre um tema candente no tempo atual. A perigosa fragmentação europeia, a que assistimos, resulta da incompreensão em relação à memória, à história política e à sociedade. O medo do outro e do diferente, a ilusão económica, o egoísmo, a prevalência do curto prazo, a desatenção relativamente às potencialidades da sociedade e da cidadania encontram raízes fundas na desvalorização do património e da memória. Não podemos esquecer o paradoxo induzido pela tentação de encarar as identidades culturais como realidades autossuficientes e fechadas, em contraponto ao “vazio de valores” e ao relativismo.
Os nacionalismos hoje emergentes na Europa central devem-se a problemas de reconhecimento e de legitimidade, sob a influência da instabilidade e da fragmentação políticas – daí a necessidade de encontrar denominadores comuns que reconheçam as diferenças e as complementaridades. Em lugar do fechamento e do medo do outro e do diferente, importa que o local, o nacional e o supranacional se articulem sem se excluir – permitindo, pela subsidiariedade, que as identidades favoreçam a convergência para uma memória enriquecida pelo que é próprio e pelo que é comum.
Não falamos de coisas do passado, irremediavelmente perdidas num canto recôndito da nossa memória. Referimo-nos à memória viva, seja ela referida a monumentos, sítios e tradições, seja constituída por acervos de museus, bibliotecas e arquivos. Mas fundamentalmente tratamos de conhecimentos ou de expressões da criatividade humana… Ter memória é, assim, respeitarmo-nos. Cuidar do que recebemos é dar atenção, é não deixar ao abandono. Por isso, o património cultural que devemos proteger é sinal para que o que tem valor hoje e sempre não seja deixado ao desbarato. Como poderemos preservar o que é novo se não cuidarmos do que é de sempre?
A Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea, assinada em Faro a 27 de outubro de 2005 e entrada em vigor a 1 de junho de 2011, que coordenámos, teve como preocupação fundamental pensar na noção de património cultural comum e de construir um conceito de responsabilidade partilhada – envolvendo o património construído e material, o património imaterial, natureza, paisagem, mundo digital e criação contemporânea. As políticas públicas de cultura devem, assim, começar pelo cuidado da herança e da memória. De facto, o património cultural refere-se à permanência de valores comuns, à salvaguarda das diferenças e ao respeito do que é próprio, do que se refere aos outros e do que constitui herança comum.
Em 2018, quando a União Europeia consagrou ao Património Cultural um Ano, tal decisão constituiu um marco emblemático para um projeto europeu de paz, de hospitalidade, de entreajuda, de desenvolvimento sustentável e de defesa da diversidade cultural. Estão em causa a cidadania livre e responsável; a soberania partilhada; a união de Estados livres e soberanos; a democracia supranacional; a subsidiariedade; e o desenvolvimento orientado para a dignidade humana. Eis por que este Ano Europeu pode e deve constituir-se num desafio às Universidades, às escolas, aos investigadores, às instituições, à sociedade civil e a todos os cidadãos europeus para que o património cultural seja considerado como fator de mobilização em torno da defesa do que é próprio e do que é comum.
A memória das guerras e em especial da Segunda Guerra Mundial ou a destruição de Palmira obriga-nos a pensar que uma cultura de paz europeia só poderá ser duradoura se à dimensão económica e monetária soubermos aliar a expressão cultural e política, com a qual poderemos tecer a coesão, a justiça distributiva, a equidade intergeracional e o primado da aprendizagem. Longe das boas intenções que enchem o inferno, precisamos de cuidado e atenção para o que somos, de onde vimos e para onde vamos.
A Cultura assume uma importância decisiva, já que a sustentabilidade não pode resumir-se nem à mera gestão dos recursos materiais, nem aos temas ambientais. Importa considerar o valor da memória, da aprendizagem e da capacidade criadora. Ao falar de Cultura, ainda estamos a ligar a fidelidade à memória, o respeito pela herança recebida das gerações passadas à Educação e à Ciência. O debate europeu atravessa um momento especialmente difícil e incerto. Como ligar a política e a economia, assegurando um papel ativo da União Europeia no equilíbrio e regulação da cena internacional? Como garantir o desenvolvimento sustentável, baseado no conhecimento, na aprendizagem, na inovação, na coesão e na qualidade de vida?
Não se tratou apenas de um gesto de boas intenções – mas estava em causa a demonstração da importância das raízes históricas e culturais; da necessidade de proteger e salvaguardar o património comum; da importância transversal e estratégica das políticas públicas ligadas à Educação, à Formação e à Ciência, bem como do entendimento de que só a proteção do património cultural, no contexto de uma identidade aberta e plural, e a sua ligação à qualidade da criação contemporânea podem corresponder a uma visão integrada do desenvolvimento, capaz de preservar uma cultura de paz.
Sabemos que não é verdade que Jean Monnet tenha dito alguma vez que se tivesse de recomeçar a construção europeia teria escolhido a cultura. De facto, uma lógica de solidariedade funcional exige a diversidade cultural – que, na fórmula de Jacques Delors, se deve associar às causas da paz e da segurança e do desenvolvimento sustentável. Os pais fundadores da Europa moderna consideraram a cultura como denominador comum de valores, como fonte da liberdade, da igualdade e da solidariedade e como pressuposto do respeito mútuo e da dignidade humana.
A política, a economia e a cultura articulam-se, assim, na defesa do bem comum – ou seja, na procura de interesses vitais comuns que contribuam para a paz e o desenvolvimento. Daí que a sustentabilidade deva ser considerada através do cuidado com a história e com a equidade entre gerações – preservando o património cultural e protegendo a natureza do irreversível esgotamento dos recursos…
Os desafios que o património cultural enfrenta e que têm impacto na sociedade contemporânea envolvem desde a transição para a era digital até à questão ambiental e demográfica, sem esquecer a prevenção e o combate do tráfico ilícito de bens culturais. Fundamentalmente, tratamos de conhecimentos, de cultura e de humanidade… Ter memória é respeitarmo-nos, é estudar a História e conhecer as raízes. Cuidar do que recebemos é dar atenção, é não deixar ao abandono, é conhecer, estudar, investigar, proteger e conservar. Mas trata-se ainda de promover a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social, de realçar o contributo económico do património cultural para os setores criativos e para o desenvolvimento.
Internacionalmente, tem-se discutido o conceito de Museu. O debate prossegue, verificando-se uma tensão entre a visão puramente instrumental dos museus que os assimila a instituições de natureza social ou participativa e a outra perspetiva, que procura preservar o que distingue os museus na sua diversidade e complexidade, tornando-os únicos. Do que se trata é de haver necessidade de evitar simplificações ou anacronismos. O património como realidade viva tem de ser visto à luz do tempo atual, compreendendo a relação entre memória e vida. A historiografia não visa um julgamento moral do que ocorreu no passado. Importa, sim, conhecer o tempo que nos precedeu, usar a memória como fator de compreensão da humanidade, de modo que a capacidade criadora das pessoas seja um fator de emancipação.
Eis por que importa compreender que o sentido crítico tem de estar presente, não para encontrar bodes expiatórios para os erros da humanidade, mas para entendermos o carácter imperfeito do género humano e a sua necessária perfectibilidade.
O que deve estar em causa é a procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos, em resposta ao enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro. E no domínio do património cultural, importa refletir sobre os bens culturais ilegitimamente apropriados e sobre as consequências de situações pretéritas de domínio de uns povos sobre outros.
É do tempo presente que falamos e da memória nos dias de hoje, enquanto projeção do passado e responsabilidade – devendo haver um cuidado especial na regulação justa da posse dos bens ilegitimamente apropriados, no desenvolvimento de um verdadeiro conceito de património comum (como defende a Convenção de Faro do Conselho da Europa, na sequência dos principais instrumentos internacionais neste domínio) e na defesa e salvaguarda efetiva do património da humanidade, numa autêntica partilha de responsabilidades e segundo uma “cultura de paz”, que Federico Mayor tornou na UNESCO marca fundamental de um conceito moderno e civilizado de património cultural.
Em suma, o património cultural não é um conceito fechado ou estático, é uma realidade viva. Ter memória é respeitarmo-nos, é estudar criticamente a História e conhecer as raízes. Cuidar do que recebemos é dar atenção, é não deixar ao abandono, é conhecer, estudar, investigar, proteger e conservar. Como compreenderemos uma civilização sem o estudo e o diálogo entre a tradição e o progresso, sem o entendimento das suas raízes culturais e religiosas? Só o cuidado do património cultural permite assumirmos uma cidadania civilizada.
Guilherme d’Oliveira Martins assina este texto na qualidade de autor do ensaio “Património cultural – Realidade viva”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.