O paradoxo desta era está escancarado nos nossos smartphones: entre os que mais acerrimamente abjuram o relativismo cultural como doença dos valores e perda de referenciais, estão muitos dos que mais depressa desrespeitam a diferença entre verdade e falsidade com desprezo por quem a reivindique. São Donald Trump e Jair Bolsonaro à escala internacional, mas um pouco por toda a parte esta vai sendo uma flagrante contradição que nos visita todos os dias em murais e notícias.

O adversário quotidiano e cada vez mais intrusivo de um relativismo informado, sereno e apostado na tolerância (e para o qual nem sequer tudo é relativo) é este outro relativismo cínico, arrogante e irresponsável, que se desobrigou da verdade e da coerência argumentativa, permitindo-se o mais radical anything goes desde que sirva o propósito de uma única agenda, a saber, a do ódio ao relativismo cultural, com o imperativo de o eliminar da superfície da Terra. Separam-se valores e verdade, como se fossem mundos diferentes – da realidade passa a poder dizer-se o que vier à cabeça e dê jeito, até mesmo que a Terra é plana, mas dos valores ai de quem se atreva a levantar uma questão. Já houve um tempo que dissemos que isto era fundamentalismo e combatíamo-lo. Hoje, percebemos como ele ficou bem semeado nas nossas sociedades hi-tech, das soft skills e do conhecimento.

Ironicamente, este caminho de relativismo da verdade e absolutismo de valores em nada torna estes mais universais. Pelo contrário, é um caminho que conduz à universalização do ódio ao outro, sob uma crescente surdez e incapacidade de diálogo intercultural. Legitimada a incomunicabilidade de valores, cada cultura, cada nacionalidade, cada religião, obstina-se nos seus de forma absoluta, até ao ódio. Onde se esperaria diálogo só resta confronto verbal. Ainda são palavras onde não há guerra, mas no lugar de razões ditas só se encontra manifestação de força. E uso de força sem razões é uma boa forma de definir o que é a violência.

Esta vontade de valores inquestionáveis é solidária da nostalgia do nacionalismo, de uma comunidade de protecção que se funde na mesma língua, no mesmo território, na mesma religião tomada como oficial, na mesma história, e que tem muito que ver com uma reação a perdas e vulnerabilidades, as trazidas por um individualismo que deixa cada um à sua sorte, as dos derrotados das sociedades baseadas nos princípios da competição e do sucesso. Mas também as trazidas pela globalização, cujo mal é, sobretudo, repetir essa mesma lógica do individualismo, simplesmente tomando agora por indivíduos economias nacionais. Há causas sem dúvida, simplesmente estas não têm de ser aceites como razões. A resposta certa à vulnerabilização do indivíduo moderno não pode ser o ódio ao outro seu contemporâneo e à sua diferença cultural.

Pode argumentar-se que comunidades nacionais subsistiram séculos sob o vínculo a valores, a papéis sociais solidamente estabelecidos, à estabilidade de uma identidade gregária acima das escolhas de uns e de outros. Dir-se-á o mesmo de comunidades religiosas. Diante da ameaça, o mais natural é fecharmo-nos. E tudo isto não pode deixar de ser levado com alguma seriedade quando a história que se vai fazendo na era da globalização é uma história de empobrecimento, vulnerabilidade e ressentimento.

Por outro lado, em sociedades aceleradas e virtuais, a precariedade mais reconhecida como económica e social dispõe também de um aspecto moral. A reactividade crescente nos nossos tempos deve ser entendida como o equivalente moralista da precariedade existencial, numa era que nada se permite esperar ou confiar pacientemente.

A desconfiança entrou de tal forma na vida das pessoas que, para muitos, já não se admite como sério nada além da natureza biológica, aquela com que nascemos e não escolhemos. A outra, a adquirida, aquela que Aristóteles comparava, na “Ética a Nicómaco”, a uma segunda natureza, e nós comparamos a hábito e educação, passou a não valer, inautêntica, mentira, fruto de relativismo se não for inculcada por algum dispositivo da força. A desconfiança é de tal ordem que, para muitos, o preferível é a conformação ao que não pode ser escolhido. Uma mulher é a sua biologia, e um homem igualmente. Se a verdade já mereceu mais respeito, também a liberdade já mereceu mais afecto.

Mas, mais fundo, a desconfiança que vai tornando cada vez mais difícil sermos outros uns para os outros, dando novos motivos à célebre tirada “O inferno são os outros” (L’enfer, c’est les autres) da peça de teatro “Huis Clos”, de Jean-Paul Sartre, torna intolerável a própria cultura.  A mudança em curso é profunda a ponto de fazer sentido perguntar se mais do que uma era pós-humana não estaremos a entrar numa era de pós-alteridade. E, bem vistas as coisas, se não é por esta via que entramos naquela, sombriamente.

Que fazer?

A alternativa a um individualismo e a uma globalização que precarizam a existência económica e social não é comunidades fechadas, sem outro, que apenas se comunicam através de sinais de força e que têm no poder a sua subsistência, concretizada nas formas do respeito, da hierarquia, da inquestionabilidade dos valores, como se fossem uma massa impenetrável ao pensamento. Mas, sem dúvida, há uma espécie de vontade de restauração dessa impenetrabilidade a crescer nas nossas sociedades, seja a pretexto da ordem dos valores, ou da ordem mundial, ou da ordem social, a lembrar a fórmula autoritarista “Deus, pátria, família”, por vezes até de forma muito explícita. É o lema integralista que Bolsonaro no Brasil e o Vox em Espanha ressuscitaram do tempo da outra senhora.

À luz disto, é importante congratular este papado de Francisco, por estar do lado certo da história, que é o da humanidade. Depois de uma encíclica marcante sobre a ecologia integral há alguns anos, agora esta nova carta encíclica do Papa Francisco, “Fratelli Tutti” – sobre a fraternidade e a amizade social – posiciona-se contra o discurso de ódio e o populismo. Com Francisco, a igreja católica tem a coragem de ser deste mundo e deste tempo.  Por exemplo, quando diz que “os movimentos digitais de ódio e destruição não constituem – como alguns pretendem fazer crer – uma ótima forma de mútua ajuda, mas meras associações contra um inimigo.” (§42)

Hoje, faltam lugares de resistência, pelo que todos são bem-vindos, num combate que tem de assumir duas prioridades.

De nada serve se não for um combate pelo senso comum, o que obriga a ir ao encontro dos que divergem, e propor-lhes o diálogo, até a discussão, desde que argumentada. Muito mais do que ter reiterado o acordo daqueles que já concordam interessa compreender porque discordam os outros, e com base nessa compreensão procurar, com a incerteza sobre o resultado, encurtar as fronteiras do desacordo. Isso é um diálogo genuíno. Fracassaremos se nos fecharmos numa bolha, por muito convencidos que estejamos de estar certos. A convicção das razões deve ser levada aos outros, mesmo que para isso haja que revolucionar as redes sociais.

Em segundo lugar, resistir passa fundamentalmente por resistir à reactividade. Fracassaremos se cairmos na armadilha de deixar que a normalidade passe a ser apenas reagir, incapaz de mais e, também por isso, mais obcecada em reagir, viciada mesmo, como se se instalasse a angústia do vazio se não houver nada a que reagir. Há dias era a rapariga apanhada com dois rapazes numa carruagem, noutro dia é a tirada infeliz de uma presidente de câmara, ou o tweet de uma deputada, o comentário deslocado de um secretário-geral de um partido, algum dia seremos qualquer um de nós sujeitados ao registo vídeo à mão de qualquer desconhecido.

Obviamente, um “Apanhados” permanente não pode ser o destino da discussão pública, mesmo que todos os caminhos dominantes, das redes sociais, e dos jornais e televisões cada vez mais rendidos ao modelo daquelas, o apontem. Fazê-lo é contribuir para a pós-democracia, que nos distrai e obceca com o fait divers na mesma proporção que abdica de democratizar decisões políticas estruturantes.

Esta reactividade é o nervo que o populismo pressiona todos os dias. Nada mais fácil do que dar motivos para se reagir contra e assim manter uma polarização permanente. Basta chamar “cigana” a uma candidata presidencial que se prepara para tirar protagonismo a quem assim a chama. Resistir à reactividade tem de ser dar a resposta, sem nunca deixar o debate político refém de uma estratégia que apenas pretende que não haja debate político nenhum.

Mas é crucial perceber que o populismo só aproveita as condições que encontra, para depois as promover. A hipersensibilidade às faltas alheias, mesmo de intolerância ou insensibilidade, é ainda uma forma de intolerância. E a reacção massificada, de milhares ou milhões, às faltas alheias, mesmo se persecutórias, é ainda uma forma de perseguição. Este regime de intolerância ao outro vai-se instalando no mundo social mesmo entre quem não se reconhece e se opõe ao populismo. Por isso é preciso estar atento aos modos como resistimos à reactividade. Não cair nessa armadilha, guardar espaço para o tacto.

A luta pelo senso comum

Nada justifica o discurso de ódio e o cancelamento da tolerância. Além da condenação dos mais fracos ao medo e à humilhação, o discurso do ódio universaliza a ameaça “deixem de ser outros ou morram!”. Mas criticá-lo e combatê-lo exige-nos saber situá-lo no seu tempo. Para não cairmos na linguagem que lhe convém, de reactividade apenas, mas ainda para perceber este tempo em que se situa e que estamos a viver.

Talvez a melhor forma de o caracterizar, com todo o alarmismo que se vai justificando, é estarmos a testemunhar em directo uma tentativa de genocídio da alteridade, não dos outros em carne e osso, mas do seu direito a serem outros, diferentes, com outros valores, outras culturas, sem a ignomínia do rótulo de inferiores, porta que escancara a pretensão a poder discriminar e desumanizar. Deveria ser um atentado ao senso comum este caminho, mas é possível perder o senso comum para as causas mais horríveis. E é assim que deve ser lida a obsessão nos nossos tempos contra o relativismo cultural. Pois para este está apenas em causa defender o direito, que tem de permanecer no centro do senso comum, a nenhuma cultura se sentir inferior mau grado a maior força tecnológica de uma em particular.

O que está em causa é continuarmos a ter por adquirido a recusa de supremacias culturais, quaisquer que sejam, mas muito particularmente a europeia (como defende o Chega por exemplo), a branca (como admite Trump), a patriarcal (como estes e demasiados outros sustentam). Para este relativismo sensato, de senso comum, de valores liberais e de tolerância, está em causa a escolha pela inclusividade, tendo como limite único as condições que a tornam possível. E é preciso perceber a relatividade deste relativismo, que se mobiliza por uma ideia de progresso sofisticada, que tem por referencial o universalismo como ideia reguladora, através do convívio e da contaminação e dos diálogos de consensos, para uma paisagem de diversidade cultural e de valores: o mundo humano.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.