Encontramo-nos a meio de mais um Campeonato Europeu de Futebol. Independentemente do desfecho para a seleção portuguesa, eis um bom pretexto, num momento em que a nossa esfera mediática é de novo invadida – ainda mais do que o costume – por intermináveis horas não só de transmissão futebolística como de análise sobre tudo o que se passa dentro e fora do terreno de jogo, para nos perguntarmos sobre o sentido da nossa interminável fascinação por este fenómeno. Faço-o aqui na forma de uma brevíssima leitura do interessante livro Em que Pensamos Quando Pensamos em Futebol, escrito pelo filósofo Simon Critchley.
Um fenómeno omnipresente
O futebol é um fenómeno social de abrangência ímpar. Em sociedades como a nossa, é um tema cujo interesse transcende classes e géneros, tornando-se o grande ‘desbloqueador de conversa’ e fator de agregação ou identificação, sobretudo se a vossa filiação futebolística for contextualmente minoritária.
Parte do interesse do livro de Critchley é o de pôr um filósofo crítico (desses tão habituados à arte de pensar e à crítica social, incluindo da alienação) a dissertar sobre o futebol, essa realidade tradicionalmente tão desconsiderada pelos meios intelectuais.
A sua grande originalidade é fazê-lo de um ponto de vista fenomenológico, entendendo-se a adaptação livre desse método, nas palavras do autor, como “a descrição daquilo que se nos revela na nossa existência quotidiana (…) [para] tornar explícito aquilo que está implícito na nossa experiência” (pp. 27-29). Trata-se, portanto, de um livro escrito na perspetiva de um espetador profundamente apaixonado pelo jogo – e, no caso de Critchley, pelo Liverpool – e que pretende, simultaneamente, captar-lhe a essência e criticar-lhe os efeitos perniciosos.
Da crítica…
Esta obra identifica bem algumas das contradições de base do futebol. A mais fundamental enuncia-se facilmente. O entorno do futebol é atravessado por diversas dinâmicas altamente criticáveis, e Critchley elenca “capitalismo, mercantilização, colonialismo, nacionalismo, psicologia de massas, patriarcado e codificação legal da violência” (p. 179), assinalando que também pode facilmente tender para o autoritarismo (p. 176) ou, acrescentemos, por via da manipulação dos afetos e da identificação tribal, para o populismo – ainda se lembram de como entrou Berlusconi na política?
Mas, simultaneamente, na realidade alternativa que cria (e que, perversamente, faz com que por vezes menorizemos realidades que não aceitaríamos noutras esferas, fruto da paixão que por vezes tolda o juízo) cria comunidade através de uma fruição partilhada.
Para Critchley, o futebol tem, assim, uma componente de “estupidez”, refletida, por exemplo, no culto dos objetos, como as camisolas (p. 97), ou nas superstições. Mas essa está mesclada com uma racionalidade muito específica. Na apreciação de Critchley “há uma genuína inteligência em funcionamento quando se é adepto de futebol” (p. 113) já que os adeptos de futebol são muitas vezes “especialistas no seu conhecimento”, o que implica a existência de discussões informadas e críticas (Ibid.).
… à utopia
Critchley acredita que “o futebol proporciona acesso privilegiado a noções duradouras sobre o que significa ser humano no mundo” (p. 31) e isso explica parte do seu fascínio. Entre elas está a experiência da colaboração em equipa ou a do envolvimento no jogo pelo jogo (p. 57) mas, também, da parte do espetador – e Critchley considera que “um jogo sem fãs é uma espécie de erro categorial” (p. 85) –, “uma imersão no sublime dos cânticos e da multidão sem a qual o jogo não estaria completo” (pp. 84-85).
Em última instância, e até pelo seu caráter excessivo, a paixão suscitada pelo futebol é vista como “uma certa loucura e utopia” (p. 101), mistura entre “a aversão a tudo o que tem de ser rejeitado e deleite” (p. 179) na experiência partilhada. Não podemos deixar que o deleite nos impeça de criticar o que tem de ser criticado. Mas, durante os 90 minutos, deixemos a bola rolar.