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Perfil de ‘Joe’ Berardo: o empresário perdido pela perigosa ligação a José Sócrates

Com o fim do socratismo, a implosão do BES e do respetivo mundo empresarial, começaram as dificuldades para José Berardo, mesmo noutras empresas em que ganhou visibilidade, como a Portugal Telecom e a Teixeira Duarte.
30 Junho 2021, 13h31

O nome de José Manuel Rodrigues Berardo, “Joe” Berardo, pai de dois filhos (Renato e Cláudia), nascido no Funchal há 77 anos (4 de julho de 1944), apenas começou a ser falado em Portugal a partir dos finais dos anos 80 do século passado. Foi então que se soube o resumo do que, até aí, teria sido a sua vida.

Um dos sete filhos de um humilde provador de vinhos madeirense, emigrara para a África do Sul com 18/19 anos sem falar uma palavra de inglês. Aí fizera fortuna. Primeiro, negociando em legumes e embalagens. Depois teria enriquecido solidamente no negócio das minas de ouro e diamantes em que se associou a um sul-africano de origem portuguesa, Tony Caldeira. Isso é certo.

Quando a respetiva empresa começou a cair na bolsa de Joanesburgo, queixou-se mais tarde Caldeira, Berardo saiu do país e voltou à pátria levando até ouro do cofre. Foi a versão do ex-amigo.

Ainda em África, Berardo fez outro amigo, mas este manteve-o enquanto ele viveu: Horácio Roque (Oleiros, 12 de abril de 1944 – Lisboa, 19 de maio de 2010). Cruzaram negócios. Regressados, continuaram juntos.

Em 1988, Berardo é um dos principais acionistas do Banif – o Banco Internacional do Funchal – ao lado de Horácio Roque, o presidente. Na Madeira, inaugura então a sua Fundação, que detém 20% da Empresa Madeirense de Tabaco, o que faz dele o sócio maioritário da companhia.

A ambos, Roque e Berardo, a presidência do General Ramalho Eanes acabou por entregar o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique (1985). Berardo somou-lhe a Grã-Cruz da mesma ordem (2004), agora das mãos de Jorge Sampaio.

O processo disciplinar instaurado pelo Conselho das Ordens Honoríficas, presidido por Manuela Ferreira Leite, na sequência do escândalo público levantado pela audição parlamentar de maio de 2019, ainda não produziu qualquer efeito. Para o que se passou naquela tarde na Assembleia da República (Berardo riu-se diversas vezes para os deputados, a quem disse que “pessoalmente” não tinha dívidas, durante a II Comissão Parlamentar de Inquérito à Recapitalização da CGD e à Gestão do Banco), persiste a explicação do advogado Paulo Saragoça da Matta, a de que Berardo “não é dotado de especiais e elevadas qualidades oratórias e retóricas que se detetam na generalidade dos atores públicos, nomeadamente nos deputados, tendo sentido grandes dificuldades em expressar-se da forma mais correta”. Confrontado pelos deputados com a ideia de que a Caixa Geral de Depósitos “está a custar uma pipa de massa” aos contribuintes, Joe Berardo tinha respondido: “A mim, não!”.

Os negócios na comunicação

As dificuldades de Berardo para se expressar em português eram verdadeiras naqueles finais dos anos 80, quando o ainda comendador comprou, a um grupo liderado por Pedro Santana Lopes, os jornais ‘Record’ e a revista ‘Sábado’, esta na primeira das suas duas vidas. Nas reuniões com os responsáveis editoriais, a que atendia tanto ao chamamento de “Joe” como de “senhor comendador”, dependendo da relação mais ou menos próxima ditada pela idade, Berardo falava em inglês. Tinha-se esquecido praticamente da língua nativa, que apenas raramente aplicava em palavras muitas vezes até fora do significado verdadeiro. Vivia no triângulo Lisboa, Funchal (onde igualmente detinha interesses na hotelaria, cujo emblema era o Hotel Savoy, dirigido por um irmão) e o Canadá, outro local de interesses financeiros.

A compra na área dos media consolidaria a então Investec, que chegou a cotar na bolsa portuguesa. A Sábado fecharia, mas o jornal ‘Record’, principal cartaz da então Edisport, que teve anos de faturar cinco milhões de euros de lucro (valores traduzidos do escudo da época), seria o sujeito de um crescimento rápido do grupo, que acabou por adquirir uma percentagem da SIC (24,99%). No auge, a Investec juntou essa participação e os dois títulos já referidos às revistas ‘Máxima’, ‘Máxima interiores’ e ‘City’, além de 20% da então editora de jornais DeltaPress. Falhado o pretendido controlo da SIC, e ‘namorado’ pela Lusomundo, então detida pelo Coronel Luís Silva, Berardo esteve quase a vender o grupo por cerca de 70 milhões de euros (mais ou menos traduzíveis por 14 milhões de contos dessa altura de escudos). O negócio foi travado no ‘fotofinish’ pelo empresário Paulo Fernandes que, vindo da Vista Alegre, encetou o caminho da atual Cofina pagando um pouco mais. Mesmo o ‘Correio da Manhã’ (então grupo Presselivre) só foi comprado tempos depois ao grupo onde pontificavam o jornalista Vítor Direito e o atual presidente do ACP, Carlos Barbosa.

E, a seguir, o vinho e a arte

Da comunicação social, o instinto de Berardo para os negócios em crescimento levou-o para o área dos vinhos. “O futuro está aí”, dizia a quem o questionava sobre o abandono dos media, setor ao qual, feito visionário, apontava como estando destinado a um futuro “difícil”.

Nessa altura, passou a controlar a JP Vinhos e a Quinta da Bacalhoa. Chegou a apontar ao controlo da Sogrape onde deteve 33%. Em parceria com a família Rothschild dizia exportar vinhos para a China. É nessa altura que se torna ainda mais famoso ao ver a sua imagem de sucesso aproveitada para difundir o cartão de crédito da American Express em Portugal. Sempre vestido de negro, adversário da gravata, adito da moda, o patrão da Metalgest fez-se filmar num cadeirão instalado numa falésia junto ao oceano. Para esse momento de fama teve direito a um seguro de 50 milhões que cobriram os três dias que duraram a produzir aqueles 30 segundos.

Na altura tinha já consigo dois homens de confiança. O primeiro, tão íntimo que foi agora detido ao mesmo tempo pela PJ, é o advogado André Luiz Gomes. O segundo era Francisco Capelo, economista formado na Católica. Foi este último, especialista do mercado de arte internacional, depois também criador do MUDE – Museu do Design e da Moda e da Casa da Ásia (para a Misericórdia de Lisboa), que construiu a coleção de arte moderna hoje conhecida por ‘Colecção Berardo’, que inclui nomes como Pablo Picasso, Joan Miró, Salvador Dalí, Francis Bacon ou Andy Warhol.

Berardo e Capelo trabalharam entre 1993 e 1999 e zangaram-se com estrondo depois de Capelo ter comprado 594 das 862 peças do acervo inicial que a leiloeira Christie’s então avaliou em 316 milhões de euros. Acabaram em tribunal e Capelo denunciou publicamente, em diversas ocasiões, as dívidas do ainda comendador à banca. Motivo: não ter cumprido o objetivo final estabelecido entre os dois, que seria o da venda da coleção de arte ao Estado para gestão pública.

O Museu de Arte Moderna abriu em Sintra em 1997 e dez anos depois passou para o Centro Cultural de Belém (CCB) onde ainda hoje as obras da coleção continuam expostas. “Com esta parceria sai a ganhar o comendador Joe Berardo, o CCB e o País”, proclamou na ocasião, em 2007, o então primeiro-ministro José Sócrates.

Finalmente, a banca

Depois do auge financeiro e social, que incluiu o apoio à estilista Fátima Lopes no reconhecimento internacional desta, o faro de Berardo para os negócios levou-o, então, para a zona de perdição que seria o da excessiva ligação à política e aos interesses de afirmação pessoal de José Sócrates, não sem que antes tentasse uma Oferta Pública de Aquisição (OPA) sobre 85% da SAD do Benfica, uma paixão a par do Marítimo (de que foi presidente da AG) para “ajudar” o clube, operação que a administração benfiquista considerou “inoportuna”.

É desses tempos áureos de enorme exposição pública que persiste a acusação concreta que Filipe Pinhal, ex-administrador do BCP na gestão de Jardim Gonçalves (outro madeirense), repetiu, em junho de 2019, numa comissão de inquérito parlamentar: “De 2008 a 2012 o presidente do BCP foi o senhor Berardo”. Esse poder de fogo fora adquirido com as ações compradas com a dívida à CGD que agora estão no centro da sua detenção pela PJ.

Uma fonte relevante da atividade bancária contactada pelo Jornal Económico, que prefere manter o anonimato, não tem dúvidas. “José Berardo” – diz – “foi um instrumento de Sócrates no seu caminho de poder pessoal, que passava pelo controlo da banca”. E explica: “Sócrates controlava a CGD através do Governo, tinha a cumplicidade de Ricardo Salgado no BES e só precisava deitar as mãos ao maior banco nacional, o BCP, para decidir quem eram os empresários que deviam, ou podiam, ter ou não financiamento. Utilizou Berardo, a troca da instalação de coleção no CCB, para ajudar a controlar o BCP. Foi um peão, como também o foram Carlos Santos Ferreira e Armando Vara”.

E os problemas chegaram

Foi então a banca que forneceu a Berardo os necessários meios para comprar ações do BCP e se tornar, em consequência da posição relevante adquirida (7%), presidente da comissão de remunerações. André Luiz Gomes, o advogado, também viria a ser vogal da Comissão de Governo Societário, Ética e Deontologia e da Comissão de Avaliação de Riscos do BCP. Berardo apoiou Paulo Teixeira Pinto contra Jardim Gonçalves. Santos Ferreira e Armando Vara, entre a CGD e o BCP, levaram avante o plano de Sócrates. Foi bom enquanto durou.

Com o fim do socratismo, a implosão do BES e do respetivo mundo empresarial, começaram as dificuldades para José Berardo, mesmo noutras empresas em que ganhou visibilidade, como a Portugal Telecom (onde votava invariavelmente no mesmo sentido do governo de Sócrates) e a Teixeira Duarte. É tudo isso, consubstanciado com o crédito concedido e que desaguou em ‘imparidades’, que a PJ agora investiga depois de, no início de abril, ter sido noticiado que o BCP, o Novo Banco e a CGD tinham avançado com um processo judicial conjunto contra Berardo, visando o objetivo de liquidar uma parte dos 980 milhões de euros que o empresário lhes deve. Tinham emprestado aquelas centenas de milhões com a garantia sobre os títulos da Associação Colecção Berardo e acabaram descobrindo que esses mesmos títulos não lhes davam controlo sobre a única coisa que tinha valor: as obras de arte. Além do mais, Berardo havia levado a efeito um aumento de capital sem avisar os credores, diminuindo-lhes a participação. É no processo a tudo isto, dirigido pelo juiz Carlos Alexandre, que estão os 439 milhões de euros de prejuízo à CGD que lhe valeram a detenção na manhã de terça-feira (na companhia do advogado André Luiz Gomes) com a suspeita de burla qualificada, fraude fiscal, branqueamento de capitais e  gestão danosa. O resto do dinheiro é devido ao NB e ao BCP.

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