Ainda nos recordamos de quando Angela Merkel, em maio de 2017, num comício em Munique, aludindo às dificuldades com Donald Trump, disse que os europeus não podem depender completamente dos outros. “Nós, europeus, temos realmente de tomar o nosso destino nas nossas próprias mãos – naturalmente em amizade com os Estados Unidos da América, em amizade com a Grã-Bretanha, ser bons vizinhos de quem quer que seja, também com a Rússia e outros países”.
No fundo, o apelo de Merkel não passava de wishfull thinking, uma vez que as elites europeias estavam devidamente sociabilizadas, “condenadas” a comportarem-se bem e de modo servil perante os desígnios da potência hegemónica. Embora alguns políticos fizessem oportunisticamente a quadratura do círculo e se apresentassem simultaneamente como atlantistas e defensores do projeto europeu (independentemente do que isso possa significar), a verdade é que na sequência da guerra na Ucrânia a ideia de uma Europa estrategicamente autónoma é colocada na gaveta pelos líderes europeus.
A ideia de um polo de poder europeu estrategicamente autónomo foi objeto de várias formulações desde a Estratégia Europeia de Segurança (Solana, 2003) até à Estratégia Global da União Europeia (2019, Mogherini) e à Bussola Estratégica (von der Leyen, 2022), que não passaram de alívios de consciências. Entre tornar-se num polo de poder alternativo, credível e mediador, explorando e beneficiando da competição entre outros polos de poder (Washington, Pequim e Moscovo), a Europa optou por se auto subalternizar e colocar-se disciplinadamente ao serviço de um deles.
Na sua formulação inicial, o projeto europeu ambicionava ser uma entidade geopolítica de atuação planetária, com objetivos geoestratégicos muito concretos e precisos, em que a atuação global e a autonomia estratégica andavam de mãos dadas, dotada de capacidade para participar na construção de uma ordem securitária mundial, a qual, para além de ter de se apoiar numa grande estratégia europeia requeria a existência de uma estratégia militar. Aspirava, pois, a ser um par interpares dos atores maiores da cena internacional, em vez de um ator secundário funcionando como apêndice de um qualquer outro projeto hegemónico.
Nesta conceção de ator global, para além de capacidade para se defender e/ou deter agressões militares, a União Europeia (UE) precisaria de recursos para impor as suas escolhas políticas pelo uso da força militar, de modo a transpor para a cena política internacional um poder que correspondesse ao seu poder económico e à sua dimensão humana e tecnológica. É difícil conceber essa ambição de outra maneira, com outras premissas.
Apesar do desencorajante droit de regard exercido por Washington sobre os penosos desenvolvimentos europeus no capítulo da segurança e defesa comuns, em que Londres funcionava geralmente como um spoiler para impedir o seu avanço, não faltaram à Europa oportunidades para afirmar o seu projeto. Referimo-nos concretamente às relações com a China e a Rússia, e à sua intervenção como um mediador internacional incontornável. No primeiro caso, na competição entre os EUA e a China e, no segundo, entre os EUA e a Rússia.
Faltou esclarecimento às elites europeias para o fazer. Em ambos os casos, Bruxelas soçobrou colocando-se ao dispor da potência hegemónica, pondo os interesses desta à frente dos seus, com as consequências que já se começam a sentir e se agravarão no futuro.
Costuma dizer-se que todos têm uma oportunidade na vida. A UE poderá ter duas, caso Donald Trump se venha a tornar presidente dos EUA e tome duas decisões cruciais, envolvendo a NATO e a Ucrânia. O pensamento de Donald Trump sobre estas duas matérias começa a ser discernível. Através de colaboradores próximos, Trump já deu a entender que tem um plano para pôr fim à guerra na Ucrânia e ao projeto belicista da clique liberal intervencionista que se encontra presentemente instalada na Casa Branca, apoiada pelos atlantistas europeus.
A ser implementado, provocará uma mudança radical na atual política externa norte-americana assente na escalada do conflito, como emergiu da reunião do G7, em Itália, e da Conferência de paz, na Suíça, ambas realizadas em junho de 2024, onde foi defendida a perpetuação da guerra.
Dois conselheiros de Trump, o Tenente-general reformado Keith Kellogg e Fred Fleitz, um antigo analista da CIA, que ocuparam cargos importantes em questões de segurança nacional durante a presidência de Trump, e que desempenham presentemente funções importantes no Center for American Security (Kellogg é copresidente e Fleitz é vice-presidente), um influente think-tank fundado em 2022 por veteranos da Administração Trump, publicaram recentemente um artigo (America First, Russia & Ukraine) onde apresentaram esse plano pormenorizadamente.
De uma forma sintética, o plano propõe forçar a Ucrânia a assinar a paz com a Rússia e a fazer concessões territoriais, ameaçando cessar o apoio a Kiev se não se sentar à mesa das negociações, e renunciar à adesão à NATO.
No artigo, refere-se que “Trump mostrou-se aberto à cooperação com a Rússia e ao diálogo com Putin… procurando encontrar formas de coexistência e de diminuição das tensões… mantendo-se simultaneamente firme na defesa dos interesses e da segurança americana.” Sem que esta postura possa significar “brandura”, Trump pretende, através da negociação, desanuviar as relações entre Washington e Moscovo.
No que respeita à NATO, em declarações ao “Politico”, Dan Caldwell, outro conselheiro de segurança do círculo próximo de Trump, fala de uma nova abordagem, que não passará pela retirada dos EUA, nem pela destruição da organização, mas pela sua reformulação. Trata-se de uma “reorientação radical” em que Washington passa voluntariamente para segundo plano em relação à Europa. “Já não temos [os EUA] escolha”, argumentando com o aumento da dívida do país, a diminuição do recrutamento militar e uma base industrial de defesa que não consegue acompanhar o desafio da Rússia e da China.
Essa reformulação significa “uma redução importante e substancial do papel da América na segurança europeia, reservando-se apenas para intervir em situações de crise”. Os EUA continuariam a garantir o guarda-chuva nuclear na Europa, manteriam o seu poder aéreo e as bases na Alemanha, Inglaterra e Turquia, bem como as suas forças navais. A responsabilidade primária pelas forças terrestres e da logística passaria dos americanos para os europeus.
O plano considera ainda a possibilidade da NATO funcionar a dois níveis: os que gastam 2% do PIB em defesa e os que não gastam. Estes últimos “não desfrutariam da generosidade da defesa e da garantia de segurança dos Estados Unidos”. Em ponderação está a possibilidade de um acordo, segundo o qual a NATO se compromete a não se expandir mais para Leste, em particular para a Ucrânia e Geórgia. A possibilidade de se desenhar uma nova arquitetura de segurança para a Europa não está fora da agenda.
A concretização do plano de Trump poderia representar uma oportunidade histórica para a Europa concretizar as suas aspirações de autonomia estratégica articulada pelos seus fundadores. Os dirigentes europeus passariam a ter, aparentemente, mais liberdade de manobra. Resta saber se serão capazes de a utilizar. O ceticismo é grande, dado o processo de socialização a que foram sujeitos e o modo como adotaram as crenças substantivas e os ideais normativos da potência dominante, manifestando o comportamento típico de líderes de Estados secundários.
A concretização destas suspeitas são um indicador de que os dirigentes europeus andaram todos estes anos a enganar os seus povos. Sabiam que não tinham capacidade nem intenção para implementar um projeto de tamanha envergadura, preferindo repousar à sombra da potência hegemónica. Passados cerca de oito anos, as declarações de Angela Merkel soam a conversa fiada.
Para concretizar a “tal” autonomia estratégica facilitada por uma mudança de política em Washington e explorar um possível “vazio estratégico” que se possa vir a colocar são precisos líderes esclarecidos e determinados, que não existem e não se perspetiva que venham a existir no curto e médio prazo, o que condena a União e os Estados europeus ao definhamento, remetendo-os para um papel secundário. Como disse Shapiro, do European Council on Foreign Relations, “os líderes europeus estão em negação”, “não têm realmente qualquer ideia de como substituir os Estados Unidos”.