Este último mês voltou a concentrar a nossa atenção na política norte-americana. Começou no final de junho quando assistimos atónitos à atrapalhação de um Biden ininteligível frente a um Trump trapaceiro, mas veemente. Continuou com o penoso abandono em câmara lenta de Biden da candidatura presidencial, com a campanha democrata a tentar argumentar que a realidade não era real e Biden num processo de negação que só cessou quando os doadores começaram a abandonar o barco.

Passou por um atentado magicamente aproveitado por Trump para mostrar combatividade e por uma convenção republicana de hegemonia trumpista; e, findou com o inesperado renascimento mediático de uma figura que, durante quatro anos, quase passou despercebida, mas agora recebe o élan vital próprio de quem é a única esperança de boa parte dos Estados Unidos (e do mundo). Sigamos o fio desta meada.

Um raspão providencial

Vistos a partir deste lado do Atlântico, de uma Europa blasé que olha para o outro lado com o sorriso meio irónico, meio condescendente, de quem observa as excentricidades do seu primo mais novo, os Estados Unidos parecem realmente outro mundo. No showbiz da política estado-unidense, tudo parece exagerado, e muitas vezes violento. Mas é claro que a política é apenas a emanação da sociedade.

Daí não ser totalmente de espantar que, num contexto do casamento entre ênfase na liberdade individual e desconfiança perante outrem resultando numa obsessão pelas armas, se assistam a tantos atentados a presidentes dos EUA ao longo da história.

Um atentado, ou uma agressão, é sempre algo terrível. Mas, quando falha, tem frequentemente um efeito político benéfico para a vítima. Lembremo-nos de Berlusconi em 2009 ou Bolsonaro em 2018. No entanto, nestes casos o efeito tende a ser o da humanização pela empatia; por mais vil que possa ser a figura, vê-la como vítima recorda-nos a todos a nossa humanidade comum, marcada pela fragilidade. O caso de Trump teve, até certo ponto, esse efeito.

Mas o mais relevante foi a tentativa – tão pouco original que se torna fastidiosa, mas não por isso menos eficaz no seu eleitorado – de transformar a fortuna da sobrevivência em providência divina. O candidato que “já cá não devia estar” torna-se o ungido, só lhe faltando caminhar sobre as águas, e sendo recebido como o indivíduo providencial que a tudo sobrevive. Já tinha a narrativa da alegada perseguição judicial e a postura dura com inimigos internos e externos; agora, a inesperada combatividade mesmo perante uma ameaça à própria vida, sublinhada pelo instinto que tornou um momento de risco num símbolo de mobilização (“lutem!”) acrescenta força ao mito de Trump.

A rudeza contra-ataca

Rapidamente se desenganou, porém, quem pensou que isso significaria o nascimento de um Trump zen, para lá da polarização e tentando vender-se como uma figura de reconciliação e união pela experiência de quase-morte.

Na convenção republicana que o entronizou, menos de uma semana depois da tentativa de assassinato, vimos o retorno da figura que conhecemos e do manancial de insultos a Biden e, com certeza já intuindo a substituição da candidatura democrata, a Kamala Harris; na convenção, referiu-se a ela como “doida”; esta quarta-feira, questionou a sua identidade racial perante um painel de jornalistas negras, o que não deixa de ser previsível – quem não se lembra da forma como Trump passou anos a lançar dúvidas sobre o facto de Obama ser americano.

Há algo que apela ao eleitorado de Trump e a boa parte dos eleitorados da direita populista, e isso é, chamemos-lhe assim, a liberdade de ofender; isto é, de não ter que obedecer aos constrangimentos dessa chatice que é o respeito por outrem (ou, como gostam de o descrever, a “ditadura do politicamente correto”). Em 2016, na primeira campanha de Trump, Paul Noth publicou um excelente cartoon em que se vê um cartaz com um lobo vestido de fato afirmando perentoriamente “vou comer-vos” e suscitando uma reação admirativa por parte de uma ovelha: “ele não tem papas na língua”.

Este paradoxo de uma admiração pela suposta autenticidade que na verdade redunda numa incivilidade capaz de destruir as normas do discurso público faz com que os padrões de avaliação tendam a não ser os mesmos de ambos os lados do espectro político. E daí ser muito difícil conseguir encontrar um antídoto para este fenómeno.

Um despertar tardio

Poderá o partido democrata salvar-se, e mitigar o erro de ter atribuído a Kamala um papel muito marginal durante os anos da Administração Biden? Estarão os Estados Unidos preparados para ter uma mulher negra como Presidente? É demasiado cedo para conseguir perceber. Mas uma coisa pode dizer-se nesta altura. É que se a eleição de Trump parecia ‘favas contadas’ há um mês atrás, isso é hoje menos certo.

A substituição de Biden por Kamala na candidatura democrata teve o efeito de um choque de energia e, neste momento, as sondagens mostram uma ligeira vantagem da candidata democrata quer em termos de voto popular geral quer nos decisivos swing states. Entre Trump e Kamala há um mundo de distância; ver-se-á em novembro qual deles prevalece.