A teoria fiscal é complexa e os conflitos quanto à formulação da sua composição óptima são inevitáveis. Da perspectiva académica (jurídica, económica e contabilística), os princípios e as normas digladiam-se permanentemente, em discussões retóricas, onde os pontos de partida e os ponto de chegada se movimentam consoante a perspectiva dogmática que se assuma (mais intervencionista ou mais liberal, ou seja, mais “redistributivista”, ou mais assente na óptica da acção pública mínima). No final, já sabemos, são os interesses da Fazenda Pública que vencem, já que a principal função dos impostos é precisamente a angariação de receita pública.

Porém, também sabemos que o modelo de política fiscal ideal deveria assentar numa perspectiva contracíclica: em alturas de alta pressão económica (como actualmente) deveria reduzir a sua intensidade; em alturas de baixa pressão, poderia aumentar a sua intensidade, de forma a angariar os recursos necessários para enfrentar o próximo choque (e haverão sempre novos choques). A proposta de Orçamento Suplementar em discussão é um bom exemplo.

Sendo necessário dar algum sinal no sentido da redução da pressão fiscal, o Governo optou, no âmbito da sua escassa margem orçamental, por ampliar o período de reporte de prejuízos, por permitir a sua transação, facilitando as operações de reestruturação empresarial e promovendo o investimento por via da “ressurreição” do crédito fiscal. O único comentário que se pode fazer a estas opções é que pecam por tardias já que o princípio da tributação pelo lucro real (no caso do reporte de prejuízos) e o princípio da neutralidade fiscal das reestruturações empresariais nas restantes obrigam, no nosso entender, à adopção destas medidas como elementos estruturais do nosso sistema fiscal.

Diferente é o caso do “adicional de solidariedade sobre o sector bancário”, criado “com o objectivo de reforçar os mecanismos de financiamento da segurança social como forma de compensação pela isenção de IVA”. Algumas notas sintéticas sobre o assunto: i) não é nenhum adicional, mas um “clone” da contribuição sobre o sector bancário; ii) a sua generalidade é duvidosa, já que se integra numa tradição recente de “diabolização sectorial” (energéticas, farmacêuticas, grandes superfícies …); iii) a compensação da isenção de IVA já se faz por via do imposto do selo; iv) a sua inserção no perímetro do princípio da capacidade contributiva ou do princípio da equivalência é muito duvidosa (na contribuição do sector bancário ainda existia a miragem da equivalência decorrente da cobertura do “risco” que o Estado suporta ao nível da garantia de depósitos); e, v) perante a pressão que existe actualmente nos intermediários bancários (relembre-se que vivemos num movimento de desintermediação económica transversal), a sua repercussão para os clientes será inevitável, ou seja, poderemos passar a ter um “imposto” não sobre a riqueza – se incidisse sobre os activos – mas sobre a pobreza, já que incide sobre os passivos.

No entanto, em época de tempestade, o sucesso de um qualquer empreendimento depende da robustez da embarcação e da qualidade do sistema de navegação. E aqui é muito preocupante a proposta de alteração de lei de enquadramento orçamental. A solidez da estrutura legal das Finanças Públicas é crítica para enfrentar a tormenta. A lei actual, apesar de ainda não implementada, era o resultado de um entendimento alargado, estabelecendo objectivos audazes mas concretizáveis que colocariam Portugal na vanguarda das boas práticas europeias. Não é por acaso que esse esforço é apoiado pelo Eurostat e pela Comissão Europeia. Uma contabilidade de acréscimo e um balanço do Estado são críticos para a boa gestão financeira, para a manutenção do Estado Social e para a legitimação dos impostos cobrados. Ora, o recuo proposto não é um pormenor. Significa voltar a colocar as finanças públicas portuguesas no século XIX, no momento em que enfrentamos uma tempestade do século XXI. Enfrentar tormentas da modernidade com tecnologia obsoleta deu sempre péssimos resultados.