Vivemos tempos conturbados nos quais a aceleração dos eventos que se sucedem não tem dado grande margem para reflexões de longo fôlego. As eleições legislativas marcadas para o próximo dia 18 de maio surgem nesse contexto. Não é surpreendente que estejamos a viver mais um microciclo; a fragilidade do apoio parlamentar ao governo assim o fazia prever. O que seria mais difícil de prever era a razão pela qual caiu, envolto nas suspeitas em torno da atividade do primeiro-ministro.

Quanto à forma, por tragicómica que tenha sido, foi totalmente coreografada: a partir de certa altura, e ainda que por diferentes razões, governo e oposição queriam eleições; mas como intuem a impopularidade das mesmas, assistimos ao típico jogo de passa-culpas. Chegados a este ponto, façamos por encontrar uma virtude no timing das eleições e consequente apelo ao esclarecimento democrático.

A ascensão de Trump no contexto da guerra na Ucrânia tem significado um realinhamento das placas tectónicas da geopolítica. Reconfiguram-se políticas de alianças e uma ordem internacional que, com todos os seus defeitos, insuficiências e injustiças, apesar de tudo se mantinha relativamente previsível desde a segunda guerra mundial; e tomam-se decisões sem precedentes, algumas mesmo impensáveis há quatro anos atrás no contexto europeu, como a alteração das regras de despesa e a viragem belicista. Dada a nossa condição semiperiférica e inserção na EU e na NATO, já se faz sentir uma pressão enorme para tomar decisões difíceis.

Às armas

Neste momento, os conflitos em Gaza e na Ucrânia não dão tréguas, e qualquer possibilidade de paz é decidida nas costas das principais vítimas e sem grande consideração por elas. A Trump importa tentar ficar na história como o Presidente dos EUA que terá conseguido impor a paz em ambos os territórios, ainda ela seja conseguida pela imposição da força e às custas da mais profunda injustiça. Nem que se tenha de promover uma limpeza étnica total em Gaza e acabar com as aspirações legítimas de criação de um Estado palestiniano, ou de impor à Ucrânia uma rendição que de facto legitime a guerra imperialista de anexação conduzida por Putin na Ucrânia.

No ataque de terça-feira que marcou o final do cessar-fogo em Gaza, terão morrido mais de 400 pessoas, entre as quais 130 crianças e dois funcionários da ONU. A ajuda humanitária está suspensa há mais de duas semanas. A continuar assim, é previsível que em breve tenham morrido, segundo as estimativas, mais de 50 mil palestinianos em Gaza desde o início do conflito. A aparente desconsideração pelo futuro dos reféns que ainda permanecem em Gaza, perante o desespero das famílias, pode ser enquadrada no contexto de um aprofundamento do extremismo em Israel, agora legitimado pela nova administração americana.

Quanto à Guerra na Ucrânia, e depois da humilhação pública imposta a Zelensky na Casa Branca no final de Fevereiro, as negociações para um cessar-fogo parecem difíceis. Na recente conversa com Trump, Putin apenas terá concordado com um cessar-fogo limitado, incluindo cessar ataques a infraestruturas energéticas, enquanto vai ganhando terreno no campo de batalha e exige a suspensão de qualquer apoio militar à Ucrânia.

Nisto, a Presidente da UE divulgou o plano para mobilizar 800 mil milhões de euros para a defesa europeia, o que não pode deixar de nos causar suores frios. Por um lado, entende-se o receio da Rússia a leste e, face à ausência de garantia americana, um reforço da defesa europeia. Por outro, e face à história da Europa, a possibilidade de uma escalada belicista é bem real.

Dívida justificável e dívida proibida

Parece-me seguro intuir que a generalidade das pessoas prefere a paz. E isso também na UE que, por comparação com os EUA, sempre projetou uma imagem de si mesma como estando ancorada num projeto de paz e bem-estar social; pese embora a crise da forma Estado-providência, essa orientação nunca desapareceu completamente, embora com grandes assimetrias territoriais. Resta saber como é que ela se conquista, e se a estratégia de dissuasão armamentista não redundará numa sucessão de outros desastres, sejam eles os da extensão da guerra propriamente dita ou os do possível desmantelamento definitivo do Estado social europeu.

Uma das dimensões caricatas deste novo alinhamento é a suspensão das regras de controlo da dívida que a UE se autoimpusera, sobretudo na sequência da crise do subprime e consequente alastramento à crise das dívidas soberanas europeias. Em Portugal, andámos mais de uma década a batalhar para cumprir os objetivos do Tratado Orçamental, nomeadamente a redução da dívida pública para cerca de 90% do PIB (e, imagina-se, para, a prazo, atingir o objetivo de 60%). E isto em nome de uma ortodoxia fiscal que significou políticas de austeridade e empobrecimento forçado em nome de uma alegada responsabilização fiscal.

E também nos lembramos como essa estratégia teve responsáveis diretos com assento em Berlim. Bem, pouco mais de uma década volvida, eis que o futuro chanceler Friedrich Merz conseguiu fazer aprovar num parlamento cessante um levantamento do limite de endividamento e um pacote de 500 mil milhões de euros para investimento em infraestrutura.

Ora, como argumenta Ricardo Paes Mamede a propósito do plano europeu, a nova conjuntura confirma-nos que “os limites orçamentais europeus não são neutros nem tecnicamente inevitáveis”: no passado, nota Paes Mamede, não foi possível investir mais substancialmente na coesão social ou na modernização da economia (embora tenha existido o precedente da suspensão das regras orçamentais durante a pandemia, lição aprendida às custas do fracasso na resposta à crise anterior); mas agora é possível investir substantivamente em armamento.

A clarificação necessária

Estamos, portanto, num ponto de viragem a nível europeu e, necessariamente, também em Portugal. Se, no passado, as políticas keynesianas quase se tinham tornado ilegais face aos tratados europeus, agora a dívida é permitida para fins de defesa. Mas é impossível pensar que isso não implicará escolhas terríveis. O que se cortará para investir em armas? No Estado Social, educação, saúde, ou nas sempre já depauperadas ciência e cultura? Estas escolhas são inevitáveis, ou deve-se lutar para que, em contexto europeu, a estratégia seja outra?

Em Portugal, curiosamente, a crise em torno de Montenegro voltou a centrar a atenção na ética e na transparência. Não tivesse o Governo caído e, provavelmente, muitas das decisões tomadas por pressão dos parceiros europeus sê-lo-iam por um governo que tinha sido eleito num contexto diferente e sem que fosse totalmente claro o que defende exatamente cada partido nestas matérias.

Face à nova realidade geoestratégica e à redefinição do papel da Europa nela, como se deve Portugal posicionar? Existindo uma reindustrialização da Europa, e esperando que ela não passe só pela defesa, em que deve Portugal apostar? Esperemos que as eleições sirvam pelo menos para que saibamos exatamente naquilo em que estaremos a votar.