A Constituição da República Portuguesa (CRP) faz questão de referir que os “direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos”. E, simultaneamente, consagra um conjunto de direitos na área do trabalho e da sua dignificação, habitação, saúde, entre outros.

Naturalmente, a interpretação da letra e do espírito da Constituição não é uma realidade estática. Por isso mesmo, nas quatro décadas de regime democrático, a CRP foi sofrendo ajustes. Mas ajustes não são derivas abruptas no entendimento dos direitos consagrados. Assim, nos anos de vigência (e excessos) da troika, a CRP e os juízes do Tribunal Constitucional foram a última barreira num percurso pouco amadurecido. Excessos que, ainda assim, se fizeram sentir nalguns aspectos e que já deveriam ter sido repelidos. O surto de greves que tem vindo a marcar 2018 e 2019 é disso o sintoma mais evidente.

Os cidadãos estão fartos das alterações que ocorreram na balança de poderes entre capital e trabalho e de terem sido removidos, por via legal, alguns dos mecanismos de equilíbrio – contratação colectiva, indemnizações razoáveis em caso de despedimento, entre outros – que asseguravam um mínimo de justiça social.

Desde o início desta década que a classe média tem sido fustigada. Primeiro foi o flagelo do desemprego, tendo como alegada ‘alternativa’ a emigração económica. Depois foi a perda do poder de compra com o tristemente célebre “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar. Por último, a perda de poder de compra fruto de actualizações de salários que não têm acontecido, ou que são abaixo da inflação.

No sector bancário, um dos baluartes da classe média que paga impostos, vota, lê e decide o sentido político dos nossos valores fundamentais, os bancos a actuar em Portugal têm vindo a recuperar a sua rendibilidade, relativa e absoluta, para os níveis pré-crise do subprime.

Estamos conscientes da complexidade do contexto dos bancos, num ambiente de taxas de juros zero, ou negativas, num paradigma que os livros de finanças nunca previram. Estamos também conscientes dos desafios trazidos pela digitalização e por novos concorrentes oriundos de fora do sector.

Mas nada disso explica o extremar de posições, em que algumas administrações bancárias parecem querer impor uma visão de tipo colonial às relações de trabalho. Administrações que prosseguem, de forma incansável, a maximização do retorno dos accionistas, sem se preocuparem em assegurar que os seus trabalhadores, reformados e pensionistas não continuem a sofrer com a erosão dos seus rendimentos do trabalho.

Bancos que colocam na mesa propostas de actualização das cláusulas contratuais de expressão pecuniária que não cobrem a inflação prevista. Bancos que procuram iludir os incautos com ‘prémios’ de desempenho que, para serem instrumento motivacional, teriam sempre de ser complementares e nunca substitutos de aumentos reais de salários e pensões.

A paciência esgotou-se e vários sindicatos bancários preparam-se para uma greve, tendo as suas direcções recebido mandato para tal. Este momento é uma verdadeira travessia do Rubicão. Os bancários estão fartos de pagar pelos erros e desmandos de terceiros. Por todos, para todos e com todos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.