Neto de Moura não entende a infidelidade. Assume-se como conservador. Não considera despropositado citar a Bíblia num acórdão por forma a “dimensionar a culpa de um arguido”. Carlos Alexandre não tem amigos ricos. Sente-se um náufrago como o livro do Gabriel García Marquez. A sua caminhada até à magistratura, fê-la a pulso, contra todas as probabilidades e à custa de uma resiliência assinalável. Ambos são de esquerda.

Eis a face pública de dois juízes portugueses com uma enorme relevância no sistema de Justiça pelos lugares que ocupam, na Relação e no Tribunal Central de Instrução Criminal. Como é que acedemos a esta informação? É pública, dada pelos próprios em entrevistas.

A partir daqui, usando uma expressão muito portuguesa, é fácil “tirar-lhes a pinta”, como fazemos com os políticos, empresários, feministas, qualquer pessoa que tenha uma voz pública. O problema é precisamente este. Não se devia poder “tirar a pinta” a juízes. E sobretudo os juízes não podem permitir sequer que o tentemos, quanto mais dar-nos as ferramentas para tal.

Não queremos dizer de um juiz que tem medo de mulheres. Que odeia as mulheres. Que é incapaz de ser imparcial quando julga uma mulher adúltera. Nem de outro que por acaso lidera ou liderou os maiores processos de crime económico em Portugal, que odeia ricos. Já estão a ver o problema não é: todos nós temos um profiler dentro de nós pronto a saltar e é inaceitável que, tratando-se do Sistema de Justiça e de juízes em particular, estes se coloquem nas nossas mãos desta maneira.

Os juízes têm direito a opinião? No tribunal, não. São obrigados a um dificílimo exercício intelectual de distanciamento emocional dos processos que julgam? Sempre. O terreno da opinião é incompatível com o do poder judicial e é por isso que as democracias funcionam. Nos políticos votamos pelas suas opiniões, precisamente na sua parcialidade, orientação ideológica, valores. A expressão da maioria vertida numa maioria governante. O mandato da Justiça é precisamente o contrário. É a expressão da Lei vertida sem outro critério em cada um dos indivíduos que com ela lida. Para que a Justiça nos sirva de consolo, é a Lei que tem de vigorar e não o homem.

Pior do que juízes que se sentem no direito de ter opinião e personalidade, é achar que corrigimos erros movendo-os para processos que, à partida, escapam à ditadura da sua personalidade e aos seus pré-conceitos. Isso é aceitar o absurdo de que, no caso dos juízes, os conflitos de interesses podem ser, simplesmente, emocionais.

Não é Neto de Moura que temos de resolver. É o sistema que temos de revisitar e tornar transparente, eventualmente institucionalizando a comunicação nos tribunais, capazes de explicar aos cidadãos processo e lei para que a Justiça possa, de facto, servir-nos de consolo.

O que não podemos ter é juízes que exercem as suas funções sem o exercício intelectual a que todo o Ser Humano se deve prestar: o da autorregulação e questionamento permanente para lá das nossas convicções individuais. E esta é a única causa que interessa discutir. Para que Neto de Moura não tenha servido apenas para agravar o sofrimento de duas mulheres humilhadas pela opinião de um juiz e para aumentar as partilhas dos artigos de opinião de talentosos humoristas.

E esta causa começa na admissão à profissão, na formação contínua e num Conselho Superior de Magistratura que sirva a democracia e não a corporação que representa.