Num safari em África, ao passar por uma hiena que ria, um turista intrigado pergunta ao guia que animal é aquele. O guia explica que é a hiena, um animal marginalizado por todos os outros pelos seus hábitos e mau cheiro, que só se alimenta de carne em putrefacção e, como todos podem ver, tem um aspecto horrível. O turista de imediato pergunta: se ela cheira tão mal, se ninguém gosta dela, se só come carne podre, se é tão feia, então porque ri tanto?
Esta velha anedota ocorre-me cada vez que vejo os que riem e exultam com a actual situação do País. Só mesmo eles sabem porque riem; ninguém que observe a nossa circunstâcia com cuidado e atenção terá vontade de rir. O parágrafo seguinte é composto única e exclusivamente por títulos de notícias em jornais de referência nas duas últimas semanas. Todos facilmente verificáveis.
“Finanças negociaram com advogados de Domingues lei para a CGD”, “Finanças informaram Costa sobre acordo com Domingues”, “Mais de 13 mil alunos à espera de receber bolsa”, “Índice de negócios na indústria desacelerou em Dezembro – INE”, “Avarias e falta de verba encostam 50% da frota da PSP”, “Números assustadores de falências entre particulares e famílias”, “Futuros pensionistas lesados nas reformas”, “Portugal paga mais para emitir dívida a 5 e a 7 anos”, “Portugal paga por dívida a 7 anos o dobro do que pagava em Junho”, “Descida do IVA na restauração está a beneficiar os mais ricos, alerta OCDE”, “Vulnerabilidades do País estão a aumentar, avisa OCDE”, “Escolas estão a meio gás e a culpa não é da greve”, “As 35 horas exigem mais 9 mil trabalhadores no Estado”, “Portugal é a estrela decadente da dívida soberana, diz a Bloomberg”, “Portugal desce um lugar no ranking da corrupção”, “Realizadas menos 5626 cirurgias”.
A verdade do País é, no mínimo, seriamente preocupante. Não há mentira, ou spin comunicacional, que engane um doente que dependa no dia de hoje do Serviço Nacional de Saúde; o PS que dizia defendê-lo está a destruí-lo sem contemplação que não seja o défice. Não há embuste que consiga esconder a precariedade das escolas públicas portuguesas: degradam-se aceleradamente, têm falta do pessoal mínimo, não oferecem estabilidade ou confiança. Não se consegue calar por mais tempo as condições miseráveis em que funcionam as forças de segurança, num momento da vida mundial em que deveriam estar mais equipadas e disponíveis para uma acção eficaz. Não há falso moralismo que consiga esconder a promiscuidade entre público e privado, o poder dos escritórios de advogados, a diferenciação entre ricos e pobres perante a lei, que se agudiza todos os dias. Não há floreado verbal, nem silêncio da APRE, que consiga continuar a iludir a real situação de pensionistas e reformados.
Sim, o défice lá se vai balizando nos valores impostos, mas à custa de receitas extraordinárias, do incumprimento das obrigações do Estado e do fortíssimo desinvestimento público. Dá vontade de perguntar onde estão hoje os que criticavam a obsessão com o défice e as incontáveis virtudes do investimento público, a par do estímulo ao consumo interno como motor de relançamento da economia.
O governo de Passos Coelho desceu o défice dos dois dígitos socráticos para os valores conhecidos, sem lesar o País, ou os Portugueses, num quarto do que Costa já fez em pouco mais de um ano. É verdade que o fez sob a feroz contestação das forças instrumentais da esquerda, que hoje se recolhem nos gabinetes num silêncio ensurdecedor. É verdade que a comunicação não esteve entre as suas prioridades, e deveria ter estado. É verdade que alguma flexibilidade no acessório lhe poderia ter dado maior amplitude de acção no essencial. Mas também é verdade que a esquerda e as suas corporações não perdoam a quem exerce o poder que se arrogam como seu por natureza.
No fim de tudo, com o país transformado numa selva, continuo profundamente intrigado. De que riem tanto Costa e Marcelo?
O autor escreve segundo a antiga ortografia.