Foi um daqueles momentos em que penso: serão os habitantes de Portugal a mesma gente que a partir do século XIV transformou uma empresa comercial, inicialmente focada no comércio de escravos, num império marítimo multicontinental que deu origem ao que hoje é considerado por muitos como a primeira globalização? Esse pensamento ocorreu-me no VIII Seminário Desafios do Mar Português, que teve como tema “Portugal e o Mar: um novo regresso”, organizado pelo CIEMar, uma incubadora do Museu Marítimo de Ílhavo.

O primeiro orador foi o professor John Brannigan do University College Dublin, que abordou o tema “A Importância Cultural e Social dos Oceanos”. A palestra incidiu sobre o mar na literatura e pintura irlandesas no século XIX. Foram referidos escritores como Yeats, Joyce, Boland, Synge (“o mar inóspito representa o mais poderoso ator na história mundial”) ou pintores como Kavanagh (“Apanhadores de berbigão na Baía de Dublin”). Houve também uma leve referência ao império britânico, que oprimiu e colonizou a Irlanda e levou à divisão da ilha que hoje perdura e está no cerne do imbróglio que é o Brexit.

E, depois, falou-se de outro império, que também oprimiu e colonizou outros povos, mas que contraste. Quando comparado com outros impérios de má fama, como o turco ou o soviético que nada de bom trouxeram ao mundo, ou até o espanhol para sempre manchado pela destruição das civilizações pré-colombianas, Portugal, continua a surgir com o “bom” império.

A força e a perenidade dessa imagem de marca secular é, ela mesmo, um feito invulgar. Desde o genial Camões, o branding de Portugal continua ancorado na mitologia da “epopeia” marítima de Quinhentos, um ativo comercial único a preservar e proteger sem que para isso seja necessário desvirtuar a história ou esconder o lado mau do império.

É extraordinário, mas os feitos daqueles portugueses foram de tal magnitude para a descoberta e compreensão do mundo, que obscurecem o lado mau do império que tem permanecido na sombra. Desde Camões, a glorificação dos feitos ultramarinos portugueses parece ipso facto justificada e justa. Todavia, nada foi feito por amor cristão a Deus ou por amor à ciência. O motor do empreendimento que levou à descoberta de novos mundos era o dinheiro, o comércio hiper lucrativo de escravos e especiarias. Como salientou José Manuel Malhão Pereira recordando Jaime Cortesão, na base de todos os descobrimentos há razões comerciais.

Enquanto a relação literária irlandesa com o mar que Branningan abordou é permeada pela melancolia e pelo passadismo, os portugueses não escondem o que é difícil esconder: enorme admiração pela expansão marítima, pelo domínio da ciência e das técnicas de construção naval e navegação, pela capacidade bélica dos nossos antepassados dos séculos XV e XVI. E não é demais celebrar que a descoberta da verdadeira dimensão do globo terrestre se deve a Fernão de Magalhães. A terra é maior do que se pensava e, afinal, para azar de Magalhães, as Molucas, ilhas das especiarias, estavam do lado português do Tratado de Tordesilhas.

O contraste entre os mapas que foram apresentados pelos oradores no seminário de Ílhavo evidenciou a enorme escala do empreendimento português. Enquanto a Irlanda sempre permaneceu europeia ancorada ao lado de outro império, os mapas que circulavam em Portugal naqueles séculos eram do mundo inteiro, tal como ia sendo conhecido, uma ideia mais tarde explorada graficamente pelo Estado Novo no mapa que havia nas escolas – “Portugal não é pequeno”.

A perceção do mundo pelos portugueses invocada pelo mar e pela expansão está, nas palavras de Ana Paula Avelar, na base do que considera ser a nossa “singular identidade”. A sua palestra teve o título “Mar: um desígnio português”. Antes de relembrar os diferentes perfis imperiais de Espanha e de Portugal – o primeiro territorial e o segundo marítimo – Avelar fez notar que a ambição imperial de D. João III transbordou para a cerimónia de receção dos embaixadores estrangeiros, em que imitou a que o imperador Carlos V praticava na corte espanhola, num momento em que, embora Portugal ainda dominasse os pontos chave de acesso aos recursos comerciais do oriente, o reticular império português já fraquejava.

Voltando à minha pergunta inicial, serão estes portugueses os mesmos de então?

Claro que sim. O esforço tantas vezes mortal que foi exigido aos marinheiros e soldados que embarcavam em direção da Índia, Malaca, Japão, não terá sido muito diferente daquele que foi exigido às tropas coloniais no século XX. A principal diferença, quanto a mim, reside na atual falta de quantidade de uma elite moral e eticamente sã com poder e capacidade de liderança. As consequências estão evidentes no perene fraco desempenho do país.

 

“HÁ MAIS PAIS DA DEMOCRACIA, SR. PRESIDENTE”: CARTA DE FRANCISCO PINTO BALSEMÃO 

Caro Nuno Cintra Torres,

Li com interesse o seu artigo “Há mais Pais da democracia, Sr. Presidente  [15 de outubro 2019] e quero agradecer-lhe que se tenha lembrado de mim.

Apenas teria acrescentado a revisão constitucional de 1982, aprovada quando eu era Primeiro Ministro e líder do PSD e Mário Soares líder do PS, e que, eliminando o Conselho da Revolução, criando o Tribunal Constitucional, subordinando as Forças Armadas ao poder civil democraticamente eleito, etc., etc., permitiu que Portugal se transformasse numa democracia de padrão ocidental.

Um abraço do 

Francisco Pinto Balsemão