O Governo publicou, no passado dia 24 de Novembro, a Estratégia Digital Nacional para consulta pública. Trata-se de uma estratégia com um percurso peculiar. A sua génese remonta ao XXII Governo Constitucional, sob a liderança da Secretaria de Estado para a Transição Digital, em 2021. A ideia original era envolver a sociedade civil num debate em torno das tecnologias de informação (TI), para desenvolver estratégias nacionais para os dados, a Inteligência Artificial e a web3, para “alcançar uma economia que produza mais valor e que seja mais conveniente, inclusiva, transparente e sustentável”.
Contudo, apenas no final de 2023, já sob o XXIII Governo Constitucional, foi dado esse passo, pela Secretaria de Estado da Digitalização e Modernização Administrativa e pelo extinto InCoDe. Um passo que, diga-se, foi dado à pressa, pois, embora a concepção da estratégia tenha contado com uma ampla participação de especialistas da sociedade civil (ponto positivo!), não houve tempo para consultar devidamente as instituições do Estado (ponto negativo!).
Esta foi uma falha que só poderia ser corrigida caso a estratégia digital fosse revista e amplamente discutida com as entidades hoje relevantes e estruturantes para uma futura implementação desta mesma estratégia. Em vez da consulta pública que se devia seguir, os documentos foram simplesmente arquivados. Mas então o que é que aconteceu?
Pois bem, foi escrita uma outra estratégia sem ouvir ninguém. O documento agora tornado público foi concebido no Ministério da Juventude e Modernização do actual XXIV Governo Constitucional. Trata-se, portanto, de uma estratégia distinta da que tinha concebida pelos grupos de trabalho num processo colaborativo (apesar de estes não terem contado na altura com instituições do Estado).
Esta nova “versão” é agora apresentada como “uma oportunidade estratégica para nos tornarmos líderes europeus na transformação digital”. Uma oportunidade que assenta num “talento crescente, ansioso por inovar e prosperar”, apesar de referir contraditoriamente “a percentagem de cidadãos com competências digitais básicas ainda estar aquém das necessidades”. Além disso, fundamentar uma estratégia com chavões do tipo “abordagem equilibrada”, “promoção da inovação”, “respeito pelos direitos fundamentais”, e “segurança e transparência”, entre outros, é o mesmo que não dizer absolutamente nada.
Adicionalmente, esta “estratégia” também destaca que “uma das grandes oportunidades do século XXI é a Inteligência Artificial”. Concordo. O ChatGPT, por exemplo, é uma ferramenta incrível que pode até redigir relatórios ou, se solicitado com o devido cuidado, conceber uma estratégia digital nacional completa, incluindo iniciativas. Na verdade, não sei se a IA foi utilizada para elaborar esta nova “versão” da estratégia proposta, com a qual, aliás, não concordo. Mas podia ter sido. Afinal, se a estratégia de Portugal se limita a seguir “o caminho traçado pela União Europeia”, será que podemos falar de uma verdadeira estratégia nacional? É que se as táticas já estão definidas, para que serve afinal uma estratégia? E, num mundo cada vez mais imprevisível e competitivo, será sequer possível prosperar sem uma?
O livro de Mariana Mazzucato com o título “O Estado Empreendedor”, publicado em 2013, explica a importância dos investimentos do estado na inovação certa para o sucesso económico. Quem escrever este documento claramente não sabe o que é estratégia e muito menos o significado de estratégia nacional.
Confundir estratégia com táctica é, aliás, um erro comum, especialmente no contexto de tecnologias que nos deslumbram. Curiosamente, desde que os projetos de transformação digital começaram a ter impacto significativo nas organizações, há mais de 30 anos, a taxa de sucesso na concretização dos mesmos continua baixa: só cerca de um projecto em cada cinco é que conseguem cumprir os objectivos, situação que se mantém até hoje.
Para ilustrar, recordemos os tempos frenéticos da adoção da Web. Inventada em 1994, foi rapidamente adotada por empresas de todo o mundo porque parecia óbvio adoptar uma tecnologia que facilitava o acesso à informação entre empresas, clientes e parceiros. Contudo, o resultado foi desigual.
As grandes tecnológicas, sobretudo as do lado ocidental do Atlântico, prosperaram. Por outro lado, muitas das empresas que aplicaram a tecnologia – ou seja, táticas – sem qualquer reflexão estratégica, acabaram por expor os seus modelos de negócio a um ambiente mais competitivo, e com margens incrivelmente mais reduzidas. Gastar dinheiro em tecnologia para reduzir margens ou perder competitividade dificilmente será o objetivo de uma estratégia bem pensada. E o mesmo se aplica a qualquer tecnologia que esteja na moda.
Como, então, desenhar uma estratégia digital eficaz?
Ao contrário do que defendem algumas correntes de pensamento (que não mencionarei), uma estratégia concreta e eficaz não deve ser desenhada de cima para baixo (top-down) com base apenas em princípios de posicionamento. Nunca. Sun Tzu, no clássico A Arte da Guerra, destaca a importância de definir tácticas na práctica como alicerces de uma estratégia, construída a partir da análise do ambiente externo, das capacidades da organização e do potencial estratégico de cada táctica. Quando se negligencia este rigor, os erros saem sempre caros.
Portugal precisa, de facto, de uma estratégia digital. Uma estratégia que aproveite as oportunidades únicas e crescentes que as tecnologias digitais representam para a nossa economia. Mas, acima de tudo, precisa de uma estratégia a sério. Para isto, temos de contar com o conhecimento, o interesse, e as múltiplas perspetivas que existem no nosso país para poder criar diálogo, fomentar o debate, o compromisso, e, com ele, e alcançar novos objectivos!
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.