No início dos anos 2000 foi publicado o livro com um título sugestivo e que, entre outros aspetos, alertava para o aprofundamento dos desequilíbrios estruturais que estavam a deixar parte do país para trás. Este país vulnerável, mas, ao mesmo tempo, cheio de potencialidades foi designado pelos organizadores da publicação, José Portela e João Castro Caldas, como “Portugal Chão”.

Em pleno contexto de acentuação desenfreada da globalização e financeirização da economia, o título e o conteúdo do livro identificavam o país dos territórios rurais, vivido por populações que não só resistiam, como se reinventavam através de projetos de desenvolvimento em áreas inovadoras de intervenção local. Assim, apesar dos processos gerais de despovoamento e de envelhecimento populacionais, estas zonas eram dinamizadas (e ainda são) por múltiplos projetos e iniciativas que tentavam reverter, ao nível da microescala, as tendências demográficas e socioeconómicas regressivas.

O título significava, simultaneamente, um alerta que, de certo modo, já antevia o pior se nada de fosse feito num patamar político mais macroestrutural. Este chão estava a desertificar-se de pessoas, a ficar sem vida e sem organização. Um país espartilhado em pequenos bocados desligados das grandes cidades e dos poderes centrais, crescentemente enfeitiçados pelos fluxos globais e liberais da sociedade e da economia em rede. Por sua vez, ao longo destas últimas duas décadas, o Estado e a administração central foram cortando as várias amarras que ainda ligavam as instituições públicas aos espaços rurais. Fechou-se e privatizou-se quase tudo o que havia para encerrar.

O Estado perdeu o chão e ficou a pairar e a dormitar, distante das populações e longe das comunidades. E só agora parece dar sinais de ter acordado com o impacto da enorme tragédia dos incêndios, perante a qual todos fomos abalados e esmagados pela brutal realidade dos territórios. O pior acabou mesmo por acontecer, como se o chão deixasse de ter país ficando quase tudo por fazer.

O desafio de recuperação e de religação do território ao país é colossal e não se resolve apenas com a urgência da resposta, embora nos próximos dias e meses todas as respostas tenham de ser garantidas para aqueles que perderam muito. Na verdade, este tremendo esforço de recuperação exige uma organização planificada e multissetorial que remete para diferentes temporalidades que se conjugam. Cada nível de atuação apresenta uma urgência própria e correspondente. Assim, a temporalidade da reforma da proteção civil não é a mesma da elaboração de uma política eficiente de ordenamento e administração do território e da floresta, mas ambas são urgentes. Tal como é urgente a necessidade de produzir um conhecimento aprofundado sobre a composição social, demográfica, económica e cultural destes territórios e das respetivas populações.

Torna-se fundamental perceber que não estamos perante uma realidade homogénea, mas de espaços diferenciados constituídos por processos complexos de perda e de erosão, tal como, de adaptação e de reinvenção. Vai, por isso, ser preciso estudar muito e a fundo de maneira a restabelecer a ligação entre a academia, a ciência e o país chão. Uma ligação amplamente quebrada, apesar dos esforços de resistência de alguns investigadores e equipas de investigação disseminados em vários centros e instituições de ensino superior.

Esta realidade exige leituras pluridisciplinares que convoquem diversas ciências e especialidades: da engenharia florestal e ambiental, passando pela economia agrária e regional, até à sociologia rural; da geografia física e humana à antropologia cultural e social. Só por intermédio da produção sistemática de conhecimento assente em metodologias de análise consistentes e robustas será possível delinear as melhores soluções políticas para o futuro. Esta é a exigência da temporalidade do longo prazo, que é tão importante e decisiva como a urgência do curto prazo.

Do ponto de vista institucional, o desafio deverá implicar uma certa reorganização do campo científico que favoreça a articulação entre saberes e perspectivas, no sentido de constituir equipas pluridisciplinares capazes de organizar projetos de investigação-ação que partam da análise do concreto, i.e., dos processos que constituem a vida nas vilas e aldeias, assim como da relação que estas desenvolvem com o meio ambiente, com a atividade agrícola e florestal, e também com os espaços urbanos e periurbanos.

O país precisa de uma ciência mais aberta que consiga desincrustar-se das agendas mercantilizadas e privadas, cujo objetivo primordial não se esgote na publicação de artigos em revistas com elevado fator de impacto que, por seu turno, se limitam a circular por um número relativamente restrito de investigadores. Os poderes públicos deverão criar as condições institucionais para a formação de consórcios estáveis de cooperação científica plenamente assegurados por financiamento público e competentes para congregar sinergias entre visões transversais, formas de pensar e vontades de arregaçar as mãos. Portugal não pode mais esperar pela urgência do longo prazo e do tempo estrutural. Acordai de vez!