“Temos a arte para não morrer da verdade”, Nietzsche

 (Resisto a comentar cenas tristes ocorridas na Assembleia da República, em que parlamentares se ofendem e distribuem, a nossas expensas, cópias de definições de palavras básicas retiradas da internet. Cada vez que banalizamos o mal que ali grassa (e, refira-se, é muito e cada vez maior…), talvez devêssemos pensar que aqueles senhores nos representam quer queiramos quer não, e que não é suposto aquele hemiciclo transformar-se num grotesco espectáculo de stand-up comedy ou num ringue de boxe. Para isso, há espectáculos melhores e mais baratos. Tolerar aquilo não é ser suave ou brando. É, mesmo, ser parvo.)

Dou por mim a assistir aos noticiários em jeito de novela e à espera dos próximos capítulos, sabendo que nunca como agora as palavras de Lampedusa foram tão certeiras: é preciso que as coisas mudem para que tudo fique na mesma. Se é inegável que vivemos substancialmente melhor do que há décadas atrás, a questão que deve ser colocada é se se podia ter feito melhor e se não estamos a viver numa aparência de modernidade que, depois, se esboroa quando chocamos com a realidade.

Em 2017, o PS aprovou alterações legislativas sobre a temática do assédio, comprometendo-se a regulamentar a questão das consequências à exposição a este fenómeno nos 90 dias subsequentes. Até hoje, não houve tempo para resolver a situação dos milhares de trabalhadores sujeitos ao assédio.

Em 2019, o mesmo PS fez aprovar alterações ao regime dos contratos a termo, propondo uma taxa especial de segurança social para as empresas mais utilizadoras deste tipo de vínculo. Até hoje, não houve tempo para o fazer.

Podia abrir-se aqui uma excepção relativa a 2018, altura em que entrou em vigor um novo regime sobre a transmissão de estabelecimento e a protecção do direito dos trabalhadores, legislação esta que teve efeitos automáticos. Tudo certíssimo, não fosse o facto de ter sido prometida aos funcionários da então PT, aos quais nunca se pode aplicar.

Em 2022, de novo o PS, imediatamente a seguir a ter chumbado uma proposta sobre as licenças menstruais (sobre as quais não tenho opinião formada, em especial quanto à sua aptidão para proteger as requerentes), anunciou a criação de um Grupo de Trabalho (o qual, espero, ao menos conte com mulheres na sua composição para disfarçar o embuste) que, segundo dizem, vai estudar as consequências de ciclos que existem ao mesmo tempo que a humanidade.

Todos sabíamos desde há muito que, neste país, quando não se quer fazer nada, o ideal era criar-se uma comissão que iria estudar o tema, à qual se seguiria outra, para fiscalizar o trabalho da primeira e assim sucessivamente. No que o PS é, também aqui, inovador é na produção de legislação que fica lindamente quando anunciada ao público e é usada para cativar votos, mas que nunca chega a entrar de facto em vigor porque os seus efeitos ficam sempre relegados para momento ulterior (o qual, como é óbvio, nunca chega).

O que estranho já nem é ninguém dizer nada sobre isto, porque estamos habituados a um calvário de agradecer esmolas e esquecer direitos. Aquilo que me parece mais surreal é ainda existir quem acredite que se procura realmente resolver os problemas e não estruturar um mero faz-de-conta. Por isso e em rigor, talvez se possa dizer que ser Português não é, apenas, primar por ser suave. Bastas vezes, para se ter algum sucesso neste país é preciso não ter coluna nem memória.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.